segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Masoquismo gastronómico

Para a Mariana e para o Martim, com quem provei o meu primeiro cazu marzu.


If I could bleed, or sleep!
If my mouth could marry a hurt like that!
Sylvia Plath

 
Nunca fui apenas uma pessoa que se alimenta, sempre fui um gajo que come. A minha mãe diz que não, que quando eu era bebé não comia nada e que tudo me distraía da sopa de legumes. O problema chegou a tais dimensões que o lugar preferido dos meus pais para me obrigarem a comer era uma sala onde me punham virado para uma parede completamente branca e sem qualquer elemento decorativo. Não posso asseverar a veracidade desta história, porque, como tenho vindo a descobrir, os meus pais são pessoas com sentimentos religiosos e por certo preferem imaginar que houve uma época da minha vida em que o meu estado natural não se padronizava por impulsos de gula.
Desde que tenho consciência da minha presença no mundo e capacidade de arquivar a esse propósito memórias concretas, sempre gostei de comer de uma forma que ora encantava ora afligia as pessoas. Acontece que, no início, eu era um puto mimado para comida, no fundo, aquilo a que se pode chamar um fascista gastronómico. Gostava da comida da minha mãe e da Joana – que tomava conta de mim – e, também, de todos os sítios que cozinhavam as mesmas coisas que a minha mãe e a Joana e que o faziam mais ou menos como elas. Isto é normal numa criança, acho, mas eu era, ainda assim, um bocado para o estranho, porque aquilo de que gostava e que me cozinhavam era soufflé de peixe, mão de vaca com grão, ensopado de borrego, sopa de tomate com peixe frito, empadas de caça, e por aí.
Mas não gostava de muito mais coisas, nomeadamente não suportava refeições mais simples tipo bife com batatas fritas ou hambúrgueres com ovo, aquelas coisas de que a maioria das crianças gosta. Eu era, até certo ponto, descrito pelos meus pais como um puto complicado de pôr a comer, exactamente o contrário do meu irmão que sempre gostou de provar de tudo.
O que mudou tudo isto teve menos que ver com comida e mais com a concepção que tinha sobre a minha posição no mundo. Há miúdos que convivem pacificamente com aquela hemisferização do universo entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças. Eu nunca percebi as coisas assim e, principalmente, nunca percebi muito bem aquela falácia argumentativa que é o assunto só de adultos. É provável que os amigos agrobetos dos meus pais não primassem pela perspicácia e inteligência, mas a verdade é que nunca me senti particularmente diferente daquelas pessoas que tinham mais um metro que eu de altura. Compreendia-lhes a conversa, percebia-lhes, em certa medida, a angústia que por vezes aplicavam aos diálogos. Sempre me pareceu que a única diferença entre mim e eles era que eles não tinham um game boy e que eu era mais baixinho, coisa que não me permitia chegar com os pés aos pedais do jipe que todos tinham. Os meus pais, felizmente, não tinham um jipe, mas nem por isso me pareciam mais adultos que os amigos deles.
Todos os malditos fins de semana lá me deixavam em casa, com a Joana, e iam jantar fora com os amigos, numa terra chamada Estremoz, a cerca de trinta quilómetros de Elvas. Não era o comer em casa que me chateava, porque eu preferia de longe a cozinha da Joana a qualquer coisa que um restaurante me pudesse oferecer, mas aquela ostracização social e etária era inaceitável. Não conseguia compreender o que me era interdito naquele misto de latifundiários, empregados de bancos e funcionários públicos que se juntavam a uma mesa num sábado e por volta das oito e meia da noite.
Os meus pais, habilidosos e sabedores da impaciência que isto me causava, mantinham-me o game boy apinhado de jogos, mas eu sempre fui uma pessoa de soluções extremas e radicais para os meus problemas e aproveitei um natal para exigir como prenda a autorização para participar nos tais jantares de adultos. Até escrevi uma carta ao Pai Natal. Tamanha obstinação com um objectivo, disposta a abdicar de presentes e a passar pelo ridículo de parecer acreditar ainda no Pai Natal, sensibilizou os meus pais. Mas, ao mesmo tempo, também os assustou e os tornou ainda mais desconfiados do espécime que por ali andava a crescer. Sei isto porque, apesar de terem acedido ao meu pedido, não deixaram de o fazer sem me prepararem uma armadilha.
Chegado o sábado prometido, lá me arrumaram entre os adultos numa mesa do restaurante Julião (acho que era assim que se chamava). Lembro-me que ficava mesmo em frente a uma sociedade recreativa. Devia ter desconfiado das intenções dos meus pais, porque sempre que me permitiam pequenas incursões no mundo dos adultos isso era normalmente precedido de inúmeras ameaças de porrada caso transgredisse a mais pequenina regra, o que desta vez não estava de todo a acontecer. Claro que a armadilha não demorou a chegar. Ao fim de dois minutos no restaurante, quando ainda nem sequer tinha podido pedir o meu Jói de laranja, puseram-me no prato uma coisa com ar de panado de frango, mas que rapidamente percebi estar longe de ser qualquer coisa que, em tempos, tivesse ostentado uma penugem. “São perninhas de rã”, foi como o meu pai me apresentou aquilo, com um sorriso tão aberto que mais parecia que lhe doíam os dentes. Antes fosse isso, pensei eu. Sabia que o melhor era não esboçar qualquer reacção para lá de uma simples pergunta, “De rã?”. A confirmação unânime pelos demais adultos dissipou a esperança de que se tratasse só de uma brincadeira.
Percebi também que aquilo, afinal, era uma grande conspiração contra mim, que a armadilha tinha sido combinada de antemão com os amigos dos meus pais e que, agora, toda a gente estava a olhar para o meu rosto de pânico. Observei por um instante aquelas pernas titubeantes, segurando-as com a ponta dos dedos e fingindo que aqueles pares de olhos cretinos fixados em mim me eram completamente alheios. Não sabia sequer o que é que ali era para se comer, o que era carne ou o que era osso e cartilagem, mas nem me atrevi a perguntar. Eu nem sabia sequer que se comiam rãs. Interpretei esse conhecimento como um código de maturidade, uma demonstração ritual de que estava preparado para jantar entre adultos. Mordi a parte que me pareceu ser comestível e preparei-me mentalmente para cuspir comida e de seguida levar com uma valente chapada nas trombas.
Pode ter sido um milagre. Talvez alguma divindade gastronómica aborrecida com a iniquidade dos meus pais tenha alterado o sabor das pernas de rã no último instante, substituindo-o por algo que me agradava. Ou talvez as perninhas de rã sejam uma coisa absolutamente compatível com as singularidades do meu paladar. O que eu sei foi que me soube bem, que me excitou, que me provocou uma sensação de prazer inédita. Ainda mal tinha acabado de mastigar o primeiro naco e já atava a abocanhar outra vez o bicho. O horror no rosto dos meus pais atestava perfeitamente a consciência do insucesso, quer porque se aperceberam de que eu era, mesmo, um caso perdido de profanação, quer porque pela primeira vez tinham sido ostensiva e publicamente derrotados por uma criança que se preocupava com pouco mais coisas que as horas a que o He-Man passava na televisão.
Depois deste jantar, depois das perninhas de rã, a minha atitude para com a comida mudou. Nunca mais, em toda a minha vida, voltei a dizer que não a um prato, a não aceitar provar algo desconhecido. Miudezas de animais? Venham. Comida gelatinosa ou viscosa? Siga. Pimentos ameaçadoramente picantes? Claro que sim. Cada ingrediente desconhecido ou de aspecto pouco apelativo recorda-me o desafio colocado pelos meus pais e a minha decisão é sempre a mesma: enfrentá-lo e esperar que tudo corra bem.
E muitas vezes não corre. Um pedaço de casu marzu, um queijo italiano (pecorino, se não me falha a memória) em decomposição e carregado de larvas, deixou-me na boca um sabor que imagino ser o de um cadáver a apodrecer, o qual sobreviveu a muitas mais lavagens de dentes do que seria recomendável para a minha vida sexual nessas semanas em Itália. Uma vez comi uma espécie de feto de alienígena, de aspecto fálico-murcho, a que dão o nome de ameijoa-gigante e posso garantir-vos que, para além de uma horrível textura fibrosa, não há na terra gengibre, wasabi e soja que cheguem para disfarçar o sabor daquilo: o equivalente, em termos de paladar, a afogarmo-nos numa poça de mijo.

Sem comentários:

Enviar um comentário