Para a Mariana e para o Martim, com quem provei
o meu primeiro cazu marzu.
If I could bleed, or sleep!
If my mouth could marry a hurt like that!
Sylvia Plath
Nunca fui apenas uma pessoa
que se alimenta, sempre fui um gajo que come. A minha mãe diz que não, que
quando eu era bebé não comia nada e que tudo me distraía da sopa de legumes. O
problema chegou a tais dimensões que o lugar preferido dos meus pais para me
obrigarem a comer era uma sala onde me punham virado para uma parede
completamente branca e sem qualquer elemento decorativo. Não posso asseverar a
veracidade desta história, porque, como tenho vindo a descobrir, os meus pais são
pessoas com sentimentos religiosos e por certo preferem imaginar que houve uma
época da minha vida em que o meu estado natural não se padronizava por impulsos
de gula.
Desde que tenho consciência da
minha presença no mundo e capacidade de arquivar a esse propósito memórias
concretas, sempre gostei de comer de uma forma que ora encantava ora afligia as
pessoas. Acontece que, no início, eu era um puto mimado para comida, no fundo,
aquilo a que se pode chamar um fascista gastronómico. Gostava da comida da
minha mãe e da Joana – que tomava conta de mim – e, também, de todos os sítios
que cozinhavam as mesmas coisas que a minha mãe e a Joana e que o faziam mais
ou menos como elas. Isto é normal numa criança, acho, mas eu era, ainda assim,
um bocado para o estranho, porque aquilo de que gostava e que me cozinhavam era
soufflé de peixe, mão de vaca com grão, ensopado de borrego, sopa de tomate com
peixe frito, empadas de caça, e por aí.
Mas não gostava de muito mais
coisas, nomeadamente não suportava refeições mais simples tipo bife com batatas
fritas ou hambúrgueres com ovo, aquelas coisas de que a maioria das crianças
gosta. Eu era, até certo ponto, descrito pelos meus pais como um puto
complicado de pôr a comer, exactamente o contrário do meu irmão que sempre
gostou de provar de tudo.
O que mudou tudo isto teve
menos que ver com comida e mais com a concepção que tinha sobre a minha posição
no mundo. Há miúdos que convivem pacificamente com aquela hemisferização do
universo entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças. Eu nunca percebi as
coisas assim e, principalmente, nunca percebi muito bem aquela falácia
argumentativa que é o assunto só de adultos. É provável que os amigos agrobetos
dos meus pais não primassem pela perspicácia e inteligência, mas a verdade é
que nunca me senti particularmente diferente daquelas pessoas que tinham mais
um metro que eu de altura. Compreendia-lhes a conversa, percebia-lhes, em certa
medida, a angústia que por vezes aplicavam aos diálogos. Sempre me pareceu que
a única diferença entre mim e eles era que eles não tinham um game boy e que eu
era mais baixinho, coisa que não me permitia chegar com os pés aos pedais do
jipe que todos tinham. Os meus pais, felizmente, não tinham um jipe, mas nem
por isso me pareciam mais adultos que os amigos deles.
Todos os malditos fins de
semana lá me deixavam em casa, com a Joana, e iam jantar fora com os amigos,
numa terra chamada Estremoz, a cerca de trinta quilómetros de Elvas. Não era o
comer em casa que me chateava, porque eu preferia de longe a cozinha da Joana a
qualquer coisa que um restaurante me pudesse oferecer, mas aquela ostracização
social e etária era inaceitável. Não conseguia compreender o que me era
interdito naquele misto de latifundiários, empregados de bancos e funcionários
públicos que se juntavam a uma mesa num sábado e por volta das oito e meia da
noite.
Os meus pais, habilidosos e
sabedores da impaciência que isto me causava, mantinham-me o game boy apinhado
de jogos, mas eu sempre fui uma pessoa de soluções extremas e radicais para os
meus problemas e aproveitei um natal para exigir como prenda a autorização para
participar nos tais jantares de adultos. Até escrevi uma carta ao Pai Natal.
Tamanha obstinação com um objectivo, disposta a abdicar de presentes e a passar
pelo ridículo de parecer acreditar ainda no Pai Natal, sensibilizou os meus
pais. Mas, ao mesmo tempo, também os assustou e os tornou ainda mais
desconfiados do espécime que por ali andava a crescer. Sei isto porque, apesar
de terem acedido ao meu pedido, não deixaram de o fazer sem me prepararem uma
armadilha.
Chegado o sábado prometido, lá
me arrumaram entre os adultos numa mesa do restaurante Julião (acho que era
assim que se chamava). Lembro-me que ficava mesmo em frente a uma sociedade
recreativa. Devia ter desconfiado das intenções dos meus pais, porque sempre
que me permitiam pequenas incursões no mundo dos adultos isso era normalmente
precedido de inúmeras ameaças de porrada caso transgredisse a mais pequenina
regra, o que desta vez não estava de todo a acontecer. Claro que a armadilha
não demorou a chegar. Ao fim de dois minutos no restaurante, quando ainda nem
sequer tinha podido pedir o meu Jói de laranja, puseram-me no prato uma coisa
com ar de panado de frango, mas que rapidamente percebi estar longe de ser
qualquer coisa que, em tempos, tivesse ostentado uma penugem. “São perninhas de
rã”, foi como o meu pai me apresentou aquilo, com um sorriso tão aberto que
mais parecia que lhe doíam os dentes. Antes fosse isso, pensei eu. Sabia que o
melhor era não esboçar qualquer reacção para lá de uma simples pergunta, “De
rã?”. A confirmação unânime pelos demais adultos dissipou a esperança de que se
tratasse só de uma brincadeira.
Percebi também que aquilo,
afinal, era uma grande conspiração contra mim, que a armadilha tinha sido
combinada de antemão com os amigos dos meus pais e que, agora, toda a gente
estava a olhar para o meu rosto de pânico. Observei por um instante aquelas
pernas titubeantes, segurando-as com a ponta dos dedos e fingindo que aqueles
pares de olhos cretinos fixados em mim me eram completamente alheios. Não sabia
sequer o que é que ali era para se comer, o que era carne ou o que era osso e
cartilagem, mas nem me atrevi a perguntar. Eu nem sabia sequer que se comiam
rãs. Interpretei esse conhecimento como um código de maturidade, uma
demonstração ritual de que estava preparado para jantar entre adultos. Mordi a
parte que me pareceu ser comestível e preparei-me mentalmente para cuspir
comida e de seguida levar com uma valente chapada nas trombas.
Pode ter sido um milagre.
Talvez alguma divindade gastronómica aborrecida com a iniquidade dos meus pais
tenha alterado o sabor das pernas de rã no último instante, substituindo-o por
algo que me agradava. Ou talvez as perninhas de rã sejam uma coisa
absolutamente compatível com as singularidades do meu paladar. O que eu sei foi
que me soube bem, que me excitou, que me provocou uma sensação de prazer
inédita. Ainda mal tinha acabado de mastigar o primeiro naco e já atava a
abocanhar outra vez o bicho. O horror no rosto dos meus pais atestava
perfeitamente a consciência do insucesso, quer porque se aperceberam de que eu
era, mesmo, um caso perdido de profanação, quer porque pela primeira vez tinham
sido ostensiva e publicamente derrotados por uma criança que se preocupava com
pouco mais coisas que as horas a que o He-Man passava na televisão.
Depois deste jantar, depois das
perninhas de rã, a minha atitude para com a comida mudou. Nunca mais, em toda a
minha vida, voltei a dizer que não a um prato, a não aceitar provar algo
desconhecido. Miudezas de animais? Venham. Comida gelatinosa ou viscosa? Siga.
Pimentos ameaçadoramente picantes? Claro que sim. Cada ingrediente desconhecido
ou de aspecto pouco apelativo recorda-me o desafio colocado pelos meus pais e a
minha decisão é sempre a mesma: enfrentá-lo e esperar que tudo corra bem.
E muitas vezes não corre. Um pedaço de
casu marzu, um queijo italiano (pecorino, se não me falha a memória) em
decomposição e carregado de larvas, deixou-me na boca um sabor que imagino ser
o de um cadáver a apodrecer, o qual sobreviveu a muitas mais lavagens de dentes
do que seria recomendável para a minha vida sexual nessas semanas em Itália.
Uma vez comi uma espécie de feto de alienígena, de aspecto fálico-murcho, a que
dão o nome de ameijoa-gigante e posso garantir-vos que, para além de uma
horrível textura fibrosa, não há na terra gengibre, wasabi e soja que cheguem
para disfarçar o sabor daquilo: o equivalente, em termos de paladar, a
afogarmo-nos numa poça de mijo.
Sem comentários:
Enviar um comentário