De toutes les passions, la seule
vraiment respectable me paraît être la gourmandise.
Guy de Maupassant
Talvez tenha sido por puritanismo ou, simplesmente, por
atraso civilizacional, mas o certo é que a comida até há uns anos raramente
aparecia na programação dos canais de televisão cá do burgo. Nas livrarias
acontecia o mesmo. Sempre gostei de comprar livros sobre comida, fossem
ensaios, manuais ou memórias de cozinheiros. Só que há uns anos atrás, quando
comecei a compor a minha biblioteca gastronómica, essas secções das livrarias
portuguesas eram diminutas ou, na maioria dos casos, inexistentes. Os poucos
livros que se conseguiam encontrar ou eram pesados volumes preparados para os
armários de cozinha ou então livros dos poucos cozinheiros que iam aparecendo
na televisão, com mais fotografias e introspecção pateta do que receitas úteis.
Era um universo sexista e nitidamente vocacionado para uma concepção
conservadora da cozinha.
Contra isto que acabei de dizer, podem perguntar-me “Então
e o Jamie Oliver e a Nigella Lawson? Esses já dão há uns quantos anos na
televisão.” Claro que dão, desde quando é que aquilo são programas sobre
comida? Os do Jamie Oliver são, como se sabe, documentários sobre os efeitos
que o consumo prolongado de cocaína pode ter numa pessoa e os da Nigella são
sobre uma senhora a sujar-se em sítios pornopotentes do corpo e, depois, a
limpar as nódoas de forma malandra. Assunto encerrado.
Mas vamos falar de coisas sérias. A comida, enquanto
consumo, tem duas funções: a nutrição e o prazer. À primeira dessas dimensões
chamamos alimentação, à segunda gastronomia. A alimentação, ao que parece,
esteve sempre na moda. A gastronomia é diferente, até porque é bem mais que ter
prazer com a comida. A gastronomia é o privilégio de não ter que pensar na
comida enquanto alimentação. E isso até há bem pouco tempo era um luxo que só
estava ao acesso das elites. Mas que tem isto a ver com um texto que deve ser
sobre programas de comida na televisão?
A revolução gastronómica, que permitiu a democratização do
puro prazer com a comida, teve como grande motor o advento dos programas de
cozinha na televisão, mais ou menos após a Segunda Grande Guerra. Como nunca
antes, os universos paralelos da cozinha dos grandes restaurantes e da cozinha
de casa iniciaram o seu diálogo. E ninguém melhor deu veículo a este diálogo do
que as primeiras embaixadoras da grande cozinha francesa em terras anglófonas, a
Julia Child e a Fanny Cradock. Estas duas grandes mulheres inauguraram o filão
de programas sobre comida que hoje em dia povoam a televisão, até mesmo nos
mais inusitados horários. Foi no desenvolvimento do seu legado que a comida
começou a abandonar o seu âmbito funcionalista – e o seu horário pré-almoço –
para se entregar ao simples prazer – e ao horário hedonista por excelência, o
pós-jantar.
Não deixa de ser verdade que em grande parte destes programas
gastronómicos que por aí andam a comida parece ser apenas um pretexto, como
acontece nos programas do Gordon Ramsay, que está para a irreverência na
cozinha como a Avril Lavigne está para o punk. Pode parecer disparatado o que
vou dizer mas, tirando os programas de culinária e receitas, o No Reservations do Anthony Bourdain é o
único programa a dar na televisão portuguesa que é absoluta e inteiramente
dedicado à comida. Porque a comida, por mais estranho que isto pareça, não é
trono indisputado das papilas gustativas, do estreito espaço que se forma entre
o doce e o salgado, entre o que sabe bem e o que sabe mal. Ela importa também
no acto de partilha, no seu efeito de memória, na compreensão da história que
precede um prato e, neste apartado, a narração do Bourdain é campeonato de um
só homem, apesar de haver por aí umas imitações mal-amanhadas como o Andrew
Zimmern, no Bizzare Foods, e o Adam
Richman, no intragável Man vs. Food,
um programa tão interessante como levar pontapés no focinho.
Não me importa nada que o Bourdain seja um cozinheiro
medíocre e que isso seja constantemente exposto nos programas em que ele tenta
produzir alguma coisa de mastigável. Basta vê-lo a tremer ao pé do Éric Ripert
num No Reservations passado na Brasserie
Les Halles ou a ser incapaz de montar um prato no El Bulli que miúdos com vinte
anos e escassos meses de experiência não têm qualquer dificuldade em completar.
Como disse, isso não importa. O papel do Bourdain no universo gastronómico é o
único digno de competir com o Olimpo dos chefs: Marie-Antoine Carême, Auguste
Escoffier, Jöel Robuchon e Ferran Adrià.
De entre os inúmeros tipos de programas de comida – e há-os
bem esquisitos –, vou falar agora sobre os concursos de cozinha. Podia
perder-me aqui em subcategorias, mas neste caso elas são, essencialmente, duas:
os concursos de amadores e os concursos de profissionais. Dos que passam na
nossa televisão, o melhor concurso de amadores é o Masterchef Austrália, claramente superior à versão apalhaçada (Masterchef US) e à versão lobotomizada (Masterchef Portugal) e o melhor de
profissionais é o Top Chef, que
infelizmente já não dá em nenhum canal, acho eu. Nesta categoria, também gosto
muito do Iron Chef, que às vezes é
absolutamente brilhante, apesar de toda aquela pose bushido-parva.
Se tiver de escolher entre os concursos profissionais e os
amadores, claramente prefiro os primeiros. Os programas de amadores, mesmo quando
são tão bons quanto o Masterchef
Austrália, incluem sempre uma dose de vida privada dos concorrentes que não
interessa para nada. De vez em quando lá aparecem os familiares aos berros ou
imagens dos concorrentes a chorar porque uma receita de sopa lhes recorda a
comidinha da avó que morreu há uns meses – cambada de pussies. Também não quero
que me interpretem mal, o drama nestes concursos é sempre bom, mas só quando
envolve tachos a voar e concorrentes maquiavélicos armados em filhos-da-puta
uns com os outros, o que, mesmo podendo parecer exagerado, corresponde quase
fielmente ao ambiente tenso e caótico de uma cozinha profissional. O drama
restante é dispensável e está mais próximo de ver fotos de gatinhos do que de
cozinhar à séria. Trabalhar numa cozinha é um estágio intensivo para uma
eternidade de danação no inferno. Fornos, bicos de fogões, água quente a
correr, luzes artificiais ligadas o dia todo, espaços exíguos, cheiro de
dezenas de ingredientes diferentes, cheiro a homo faber, barulhos diversos,
ordens e pedidos aos berros, “Dois minutos para o hambúrguer”, “Ou me trazes as
chalotas ou levas com panela nos cornos”, “Controla a porra do tutano”, “Um
tártaro, dois atuns, um deles sem espargos, três pregos, um meio-termo com
alho, outro bem passado com alho e um médio-mal sem alho e com queijo, duas
sopas de tomate, uma com mascarpone e outra sem”. Antes de ter experimentado o
que é trabalhar numa cozinha de restaurante, a minha ideia sobre como estas
coisas funcionavam estava colada ao imaginário do Anthony Bourdain. Pelo menos
nas cozinhas em que trabalhei, a coisa não se aproxima assim tanto da
antecâmara do apocalipse alimentada a testosterona, manteiga clarificada e
ervas aromáticas que o Bourdain descreve, mas também não é um lugar para meninos.
Mais de metade dos meus colegas de profissão, gente que consegue vergar o mundo
e que já aprendeu tudo o que há para saber acerca do cinismo, não seria capaz
de aguentar o ritmo de uma noite numa cozinha atarefada.
Agrada-me esta dimensão bélica do trabalho numa cozinha. E
nisto os concursos de profissionais são tão melhores. Claro que, mesmo neste
tipo, há programas deploráveis. O Hell’s
Kitchen não é sequer um concurso de cozinha, quanto mais um concurso de
profissionais. Este tipo de programas centra-se todo nas estupidezes que os
concorrentes fazem a cozinhar, isto é, na palhaçada. Dois terços dos erros
cometidos não são sequer dignos de um amador e o Gordon Ramsey há muito que
deixou de se levar a sério. Aconteceu-lhe, numa versão pior e mais gore, o
mesmo que ao mestre, o Marco Pierre White, que em tempos foi a pessoa mais
interessante do mundo da cozinha e hoje em dia faz publicidade aos caldos
Knorr. Com o Masterchef US – no qual
somam ao Ramsey um carequinha que diz que percebe muito de restauração –
passa-se o mesmo, pelo menos nos primeiros episódios. O que está ali a ser
explorado não é a comida, nem a paixão pela comida, mas antes a farsa que
resulta da junção de dois componentes que não foram feitos para estar lado a
lado: concorrentes dementes e meia-dúzia de fogões a gás a funcionar.
Os concursos de profissionais são, também, mais
interessantes pela dificuldade dos pratos e das técnicas exigidas aos
concorrentes. Não quer dizer que nos concursos de amadores não haja desafios
absurdamente complicados, principalmente para gente que é cozinheiro de trazer
por casa. Mas basta comparar um episódio de início de temporada do Top Chef com qualquer desafio final do Masterchef para perceber que o nível de
dificuldade não tem qualquer comparação. Também por isto a crueldade do júri é
muito mais controlada nos programas como o Masterchef.
É raro ver o júri a desancar um concorrente, principalmente no Masterchef Austrália, que até enjoa pela
simpatia. No Top Chef não. No Top
Chef está lá o Tom Colicchio, pleno de badassness, e de vez em quando o Anthony
Bourdain, capaz de levar ao suicídio o mais optimista dos cozinheiros. É por
tudo isto que o Top Chef já deu a
conhecer chefs interessantes, como o Richard Blais e o Marcel Vigneron e o Masterchef deu a conhecer aquele gajo...
o coiso... o... ninguém.
Infelizmente,
um dos melhores concursos de cozinha ainda não passou na televisão portuguesa,
tanto quanto sei: o Masterchef – the
Professionals. Há, também, outros programas de comida que, de forma
imperdoável, ainda nem se lembrou de os pôr em Portugal, como Marcel’s Quantum Kitchen, se bem que a
Sic Radical está a dar neste momento o Henton’s
Feasts, que é do mesmo tipo, mas em melhor. Mas a grande falha da televisão
portuguesa neste momento é não passar a segunda temporada do melhor programa sobre comida desde o No Reservations: o Mind of a Chef, narrado pelo Anthony Bourdain e que se centra, nesta segunda temporada, no Sean Brock, um dos chefs
mais entusiasmantes dos últimos anos.
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