segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Food always shines on TV


De toutes les passions, la seule vraiment respectable me paraît être la gourmandise.

Guy de Maupassant

 
Talvez tenha sido por puritanismo ou, simplesmente, por atraso civilizacional, mas o certo é que a comida até há uns anos raramente aparecia na programação dos canais de televisão cá do burgo. Nas livrarias acontecia o mesmo. Sempre gostei de comprar livros sobre comida, fossem ensaios, manuais ou memórias de cozinheiros. Só que há uns anos atrás, quando comecei a compor a minha biblioteca gastronómica, essas secções das livrarias portuguesas eram diminutas ou, na maioria dos casos, inexistentes. Os poucos livros que se conseguiam encontrar ou eram pesados volumes preparados para os armários de cozinha ou então livros dos poucos cozinheiros que iam aparecendo na televisão, com mais fotografias e introspecção pateta do que receitas úteis. Era um universo sexista e nitidamente vocacionado para uma concepção conservadora da cozinha.
Contra isto que acabei de dizer, podem perguntar-me “Então e o Jamie Oliver e a Nigella Lawson? Esses já dão há uns quantos anos na televisão.” Claro que dão, desde quando é que aquilo são programas sobre comida? Os do Jamie Oliver são, como se sabe, documentários sobre os efeitos que o consumo prolongado de cocaína pode ter numa pessoa e os da Nigella são sobre uma senhora a sujar-se em sítios pornopotentes do corpo e, depois, a limpar as nódoas de forma malandra. Assunto encerrado.
Mas vamos falar de coisas sérias. A comida, enquanto consumo, tem duas funções: a nutrição e o prazer. À primeira dessas dimensões chamamos alimentação, à segunda gastronomia. A alimentação, ao que parece, esteve sempre na moda. A gastronomia é diferente, até porque é bem mais que ter prazer com a comida. A gastronomia é o privilégio de não ter que pensar na comida enquanto alimentação. E isso até há bem pouco tempo era um luxo que só estava ao acesso das elites. Mas que tem isto a ver com um texto que deve ser sobre programas de comida na televisão?
A revolução gastronómica, que permitiu a democratização do puro prazer com a comida, teve como grande motor o advento dos programas de cozinha na televisão, mais ou menos após a Segunda Grande Guerra. Como nunca antes, os universos paralelos da cozinha dos grandes restaurantes e da cozinha de casa iniciaram o seu diálogo. E ninguém melhor deu veículo a este diálogo do que as primeiras embaixadoras da grande cozinha francesa em terras anglófonas, a Julia Child e a Fanny Cradock. Estas duas grandes mulheres inauguraram o filão de programas sobre comida que hoje em dia povoam a televisão, até mesmo nos mais inusitados horários. Foi no desenvolvimento do seu legado que a comida começou a abandonar o seu âmbito funcionalista – e o seu horário pré-almoço – para se entregar ao simples prazer – e ao horário hedonista por excelência, o pós-jantar.
Não deixa de ser verdade que em grande parte destes programas gastronómicos que por aí andam a comida parece ser apenas um pretexto, como acontece nos programas do Gordon Ramsay, que está para a irreverência na cozinha como a Avril Lavigne está para o punk. Pode parecer disparatado o que vou dizer mas, tirando os programas de culinária e receitas, o No Reservations do Anthony Bourdain é o único programa a dar na televisão portuguesa que é absoluta e inteiramente dedicado à comida. Porque a comida, por mais estranho que isto pareça, não é trono indisputado das papilas gustativas, do estreito espaço que se forma entre o doce e o salgado, entre o que sabe bem e o que sabe mal. Ela importa também no acto de partilha, no seu efeito de memória, na compreensão da história que precede um prato e, neste apartado, a narração do Bourdain é campeonato de um só homem, apesar de haver por aí umas imitações mal-amanhadas como o Andrew Zimmern, no Bizzare Foods, e o Adam Richman, no intragável Man vs. Food, um programa tão interessante como levar pontapés no focinho.
Não me importa nada que o Bourdain seja um cozinheiro medíocre e que isso seja constantemente exposto nos programas em que ele tenta produzir alguma coisa de mastigável. Basta vê-lo a tremer ao pé do Éric Ripert num No Reservations passado na Brasserie Les Halles ou a ser incapaz de montar um prato no El Bulli que miúdos com vinte anos e escassos meses de experiência não têm qualquer dificuldade em completar. Como disse, isso não importa. O papel do Bourdain no universo gastronómico é o único digno de competir com o Olimpo dos chefs: Marie-Antoine Carême, Auguste Escoffier, Jöel Robuchon e Ferran Adrià.
De entre os inúmeros tipos de programas de comida – e há-os bem esquisitos –, vou falar agora sobre os concursos de cozinha. Podia perder-me aqui em subcategorias, mas neste caso elas são, essencialmente, duas: os concursos de amadores e os concursos de profissionais. Dos que passam na nossa televisão, o melhor concurso de amadores é o Masterchef Austrália, claramente superior à versão apalhaçada (Masterchef US) e à versão lobotomizada (Masterchef Portugal) e o melhor de profissionais é o Top Chef, que infelizmente já não dá em nenhum canal, acho eu. Nesta categoria, também gosto muito do Iron Chef, que às vezes é absolutamente brilhante, apesar de toda aquela pose bushido-parva.
Se tiver de escolher entre os concursos profissionais e os amadores, claramente prefiro os primeiros. Os programas de amadores, mesmo quando são tão bons quanto o Masterchef Austrália, incluem sempre uma dose de vida privada dos concorrentes que não interessa para nada. De vez em quando lá aparecem os familiares aos berros ou imagens dos concorrentes a chorar porque uma receita de sopa lhes recorda a comidinha da avó que morreu há uns meses – cambada de pussies. Também não quero que me interpretem mal, o drama nestes concursos é sempre bom, mas só quando envolve tachos a voar e concorrentes maquiavélicos armados em filhos-da-puta uns com os outros, o que, mesmo podendo parecer exagerado, corresponde quase fielmente ao ambiente tenso e caótico de uma cozinha profissional. O drama restante é dispensável e está mais próximo de ver fotos de gatinhos do que de cozinhar à séria. Trabalhar numa cozinha é um estágio intensivo para uma eternidade de danação no inferno. Fornos, bicos de fogões, água quente a correr, luzes artificiais ligadas o dia todo, espaços exíguos, cheiro de dezenas de ingredientes diferentes, cheiro a homo faber, barulhos diversos, ordens e pedidos aos berros, “Dois minutos para o hambúrguer”, “Ou me trazes as chalotas ou levas com panela nos cornos”, “Controla a porra do tutano”, “Um tártaro, dois atuns, um deles sem espargos, três pregos, um meio-termo com alho, outro bem passado com alho e um médio-mal sem alho e com queijo, duas sopas de tomate, uma com mascarpone e outra sem”. Antes de ter experimentado o que é trabalhar numa cozinha de restaurante, a minha ideia sobre como estas coisas funcionavam estava colada ao imaginário do Anthony Bourdain. Pelo menos nas cozinhas em que trabalhei, a coisa não se aproxima assim tanto da antecâmara do apocalipse alimentada a testosterona, manteiga clarificada e ervas aromáticas que o Bourdain descreve, mas também não é um lugar para meninos. Mais de metade dos meus colegas de profissão, gente que consegue vergar o mundo e que já aprendeu tudo o que há para saber acerca do cinismo, não seria capaz de aguentar o ritmo de uma noite numa cozinha atarefada.
Agrada-me esta dimensão bélica do trabalho numa cozinha. E nisto os concursos de profissionais são tão melhores. Claro que, mesmo neste tipo, há programas deploráveis. O Hell’s Kitchen não é sequer um concurso de cozinha, quanto mais um concurso de profissionais. Este tipo de programas centra-se todo nas estupidezes que os concorrentes fazem a cozinhar, isto é, na palhaçada. Dois terços dos erros cometidos não são sequer dignos de um amador e o Gordon Ramsey há muito que deixou de se levar a sério. Aconteceu-lhe, numa versão pior e mais gore, o mesmo que ao mestre, o Marco Pierre White, que em tempos foi a pessoa mais interessante do mundo da cozinha e hoje em dia faz publicidade aos caldos Knorr. Com o Masterchef US – no qual somam ao Ramsey um carequinha que diz que percebe muito de restauração – passa-se o mesmo, pelo menos nos primeiros episódios. O que está ali a ser explorado não é a comida, nem a paixão pela comida, mas antes a farsa que resulta da junção de dois componentes que não foram feitos para estar lado a lado: concorrentes dementes e meia-dúzia de fogões a gás a funcionar.
Os concursos de profissionais são, também, mais interessantes pela dificuldade dos pratos e das técnicas exigidas aos concorrentes. Não quer dizer que nos concursos de amadores não haja desafios absurdamente complicados, principalmente para gente que é cozinheiro de trazer por casa. Mas basta comparar um episódio de início de temporada do Top Chef com qualquer desafio final do Masterchef para perceber que o nível de dificuldade não tem qualquer comparação. Também por isto a crueldade do júri é muito mais controlada nos programas como o Masterchef. É raro ver o júri a desancar um concorrente, principalmente no Masterchef Austrália, que até enjoa pela simpatia. No Top Chef não. No Top Chef está lá o Tom Colicchio, pleno de badassness, e de vez em quando o Anthony Bourdain, capaz de levar ao suicídio o mais optimista dos cozinheiros. É por tudo isto que o Top Chef já deu a conhecer chefs interessantes, como o Richard Blais e o Marcel Vigneron e o Masterchef deu a conhecer aquele gajo... o coiso... o... ninguém.
Infelizmente, um dos melhores concursos de cozinha ainda não passou na televisão portuguesa, tanto quanto sei: o Masterchef – the Professionals. Há, também, outros programas de comida que, de forma imperdoável, ainda nem se lembrou de os pôr em Portugal, como Marcel’s Quantum Kitchen, se bem que a Sic Radical está a dar neste momento o Henton’s Feasts, que é do mesmo tipo, mas em melhor. Mas a grande falha da televisão portuguesa neste momento é não passar a segunda temporada do melhor programa sobre comida desde o No Reservations: o Mind of a Chef, narrado pelo Anthony Bourdain e que se centra, nesta segunda temporada, no Sean Brock, um dos chefs mais entusiasmantes dos últimos anos.

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