I'm gonna tell you something you don't want to hear
I'm gonna show you where it's dark, but have no fear
Kavinsky
Li há uns tempos um texto do Mikel López Iturriaga
publicado no El Comidista – do El País – que no fundo copia uma ideia
do Adam Roberts no Huffington Post
sobre coisas que não se pode/deve fazer num restaurante, o qual, por sua vez,
copia umas quantas ideias do Anthony Bourdain no Kitchen Confidential, que o mais provável é ter copiado também a
ideia de qualquer outra pessoa. Nada contra, até porque aquilo que andamos por
aí a fazer é, no fundo, isso mesmo: copiar uns pelos outros.
Tanto as recomendações do Mikel Iturriaga como do Adam
Roberts fazem sentido. Por exemplo, ambos concordam que não se deve ser
esquisito com os ingredientes e pedir se este ou aquele elemento do prato pode
ser retirado. Contudo, esta ideia aparentemente intuitiva e inquestionável deve
ser matizada. A sua aceitação implica que o cliente esteja a assumir que o equilíbrio
e o efeito de um determinado prato foi pensado ao pormenor pelo chef, daí que a
única conclusão passível de ser retirada é que a ausência de qualquer elemento
pode significar a derrocada do prato como ele foi pensado e como ele é
pretendido pelo seu autor.
Mesmo circunscrevendo-nos ao universo diminuto dos
restaurantes mais finórios, isto é uma lógica muito arriscada. Não é tão
incomum assim deparar-me, num restaurante aqui de Lisboa, com umas linhas de
vinagre balsâmico – ou de uma redução qualquer – que não faziam falta nenhuma,
com uma crosta de amêndoas absolutamente despropositada ou com uma cama de
grelos ou uma cebola caramelizada por cima que não são outra coisa que uma
grande crueldade para com as belas postas de peixe ou nacos de carne que acomodam.
Outra coisa que normalmente aparece a estragar um prato são
aquelas espumas ou emulsões. Sou totalmente a favor dessas inovações da cozinha
pós-moderna e, à escala do microcosmos da minha cozinha de casa, pratico-a em
abundância. Mas a utilização de uma espuma deve obedecer a dois critérios
alternativos: ou pretende ser um complemento mais leve e fresco que os molhos
demasiado pesados ou ricos, feitos a partir de uma mother sauce; ou é por si só
o prato e, aí, tem que surpreender pelo contraste entre a textura quase etérea
e a intensidade do sabor, como acontecia com a clássica espuma de cenoura do El
Bulli. No Pedro e o Lobo – um dos restaurantes mais fanfarrões de Lisboa –
serviram-me uma vez um leite-creme com uma espuma de qualquer coisa, à qual
chamo espuma de qualquer coisa porque obviamente sabia tanto a essa coisa que
eu nem me consigo lembrar do que era. No Manifesto, onde ao contrário do Pedro
e o Lobo sabiam inventar sem comprometer a integridade dos produtos, serviam um
arroz de pato delicioso, só que complementado com espuma de parmesão que sabia
a água estagnada. Também me intriga particularmente a utilização anárquica das
ervas aromáticas polvilhadas por cima dos coitados dos pratos, mas vamos
regressar ao argumento.
Há sempre um risco inerente a assumir-se que alguém sabe
mais sobre uma coisa que nós e que é o de afinal essa pessoa não saber mesmo
mais que nós. Não devemos assumir que, em princípio, vamos saber mais sobre
cozinha do que uma pessoa que fez disso profissão, mas também não vamos assumir
que isso nunca há-de acontecer. Há casos em que a utilização deste ou daquele
ingrediente cheira logo distúrbio psicótico do cozinheiro. Comam naquele
restaurante do Olivier, no Tivoli, e vão ver.
A recomendação aqui é, como em quase tudo na comida, seguir
a intuição. Deve partir-se de uma posição de tolerância e de confiança para com
o trabalho do cozinheiro. Esta é a intuição mas imediata, acreditar que aquela
pessoa pensou devidamente aquele prato e que aquela combinação de ingredientes
ou resulta de uma interiorização dos processos milenares da cozinha ou resulta
da um trabalho ponderado e testado de subversão desses processos. A verdade é
que quando isto não acontece a nossa intuição vai, na maioria dos casos,
alertar-nos para o embuste, a não ser que a pessoa tenha por costume armar-se
em pato bravo de cardápio.
Há um outro aspecto que os dois autores recomendam e que me
parece ser uma das ideias mais importantes a reter: uma postura activa no
restaurante. Isto tem vários corolários. Convém prestar alguma atenção às
recomendações que nos são feitas mas, em última análise, o nosso apetite e a
inclinação da nossa vontade é que deve prevalecer. Não quero com isto dizer que
as recomendações dos empregados correspondem normalmente a armadilhas de
preços, mas algumas vezes é mesmo isso que acontece. Também é importante não
ter vergonha de perguntar o que leva cada prato, se isso não se encontra
explícito na ementa. Há poucas coisas mais insensatas que pedir um prato com um
ingrediente que se desconhece de todo.
Mas aquilo que importa mais, na defesa e manutenção de uma
atitude activa e salutar, é dizer que não se gostou deste ou daquele prato ou
deste ou daquele aspecto do serviço quando somos questionados sobre tal. É
ridículo convencionarmos que o aplauso ou elogio são merecidos a partir do
momento em que o nosso dinheiro é utilizado para pagar. Nunca o cliente deve
ter vergonha de dizer que não gostou de um prato com medo de parecer ignorante.
A posição de um cliente é a de alguém a quem é devido um serviço, não é o mesmo
que ir a um museu. Apesar de alguns chefs pensarem que sim, que as pessoas têm
que ir ao seu restaurante como quem vai ver uma obra de arte, cabe aos clientes
reconduzi-lo à mais básica humildade: é comida, primeiro é suposto saber bem e
depois logo vamos pensar se estava bonito ou não.
Quero também acrescentar algumas recomendações da minha
lavra da minha lavra. Já vou tendo amigos que, voluntariamente, se puseram a
povoar a terra com bebés e, também, alguns amigos que, involuntariamente,
fizeram o mesmo por estarem voluntariamente bêbados ou serem voluntariamente ignorantes.
Alguns, inclusive, começaram a levar esses bebés aos jantares que combinam
comigo. Sinto-me, por isso, na obrigação de escrever umas quantas linhas a
aconselhar esses meus amigos.
Por favor, evitem levar crianças quando jantam fora. O
único restaurante a que eu não me importo de ir e que está verdadeiramente
preparado e, já agora, interessado em receber as crianças é a vossa própria
casa. Quando eu era criança os meus pais, depois de muita insistência minha,
acabaram por perder o bom senso e começaram a levar-me aos jantares de amigos.
E eu, apesar de não me lembrar de tudo, acho que aproveitei essas oportunidades
para entornar sumol em cima das mesas e das roupas, para pedir um prato e
depois embirrar que afinal queria a comida que outra pessoa tinha pedido, para
vomitar, para dar trambolhões e ser levado de urgência ao hospital porque bati
com a mona num bloco de betão e depois de chorar me lembrei de dizer que estava
sonolento.
Não pensem que sou egoísta, até porque isto é também uma
tortura para as crianças. Não deixei de ser puto assim há tanto tempo que já
não me consiga lembrar da tortura psicológica e física que às vezes
representava uma ida a um restaurante todo pensado para gente adulta. Na
maioria dos casos, as crianças sofrem mais nos restaurantes do que um adulto
pode sofrer com a sua presença e quando isso não acontece pode ser um indício
de que o vosso filho é um génio do mal.
Eu
era, já em criança, um caso perdido. Apesar de todo o tormento físico que isso
necessariamente representava, o prazer da comida e, claro, a noção perfeita de
que estou a chatear alguém perto de mim, cedo se começaram a sobrepor. São, até
hoje, os dois elementos que mais profundamente definem o meu carácter. Não
queiram isto para os vossos filhos, a maioria não consegue chegar aqui sem uma
úlcera e 10 quilos de peso em excesso. E se eu já aqui estou sem ter a saúde
particularmente danificada, apesar de tudo, arrisco-me a dizer que é porque
cresci para o lado do mal e, por dentro, a minha alma, ou lá o raio que seja, é
balofa e psicótica.
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