segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Guia prático com alguns conselhos sobre como se comportar num restaurante


I'm gonna tell you something you don't want to hear
I'm gonna show you where it's dark, but have no fear
Kavinsky

 
Li há uns tempos um texto do Mikel López Iturriaga publicado no El Comidista – do El País – que no fundo copia uma ideia do Adam Roberts no Huffington Post sobre coisas que não se pode/deve fazer num restaurante, o qual, por sua vez, copia umas quantas ideias do Anthony Bourdain no Kitchen Confidential, que o mais provável é ter copiado também a ideia de qualquer outra pessoa. Nada contra, até porque aquilo que andamos por aí a fazer é, no fundo, isso mesmo: copiar uns pelos outros.
Tanto as recomendações do Mikel Iturriaga como do Adam Roberts fazem sentido. Por exemplo, ambos concordam que não se deve ser esquisito com os ingredientes e pedir se este ou aquele elemento do prato pode ser retirado. Contudo, esta ideia aparentemente intuitiva e inquestionável deve ser matizada. A sua aceitação implica que o cliente esteja a assumir que o equilíbrio e o efeito de um determinado prato foi pensado ao pormenor pelo chef, daí que a única conclusão passível de ser retirada é que a ausência de qualquer elemento pode significar a derrocada do prato como ele foi pensado e como ele é pretendido pelo seu autor.
Mesmo circunscrevendo-nos ao universo diminuto dos restaurantes mais finórios, isto é uma lógica muito arriscada. Não é tão incomum assim deparar-me, num restaurante aqui de Lisboa, com umas linhas de vinagre balsâmico – ou de uma redução qualquer – que não faziam falta nenhuma, com uma crosta de amêndoas absolutamente despropositada ou com uma cama de grelos ou uma cebola caramelizada por cima que não são outra coisa que uma grande crueldade para com as belas postas de peixe ou nacos de carne que acomodam.
Outra coisa que normalmente aparece a estragar um prato são aquelas espumas ou emulsões. Sou totalmente a favor dessas inovações da cozinha pós-moderna e, à escala do microcosmos da minha cozinha de casa, pratico-a em abundância. Mas a utilização de uma espuma deve obedecer a dois critérios alternativos: ou pretende ser um complemento mais leve e fresco que os molhos demasiado pesados ou ricos, feitos a partir de uma mother sauce; ou é por si só o prato e, aí, tem que surpreender pelo contraste entre a textura quase etérea e a intensidade do sabor, como acontecia com a clássica espuma de cenoura do El Bulli. No Pedro e o Lobo – um dos restaurantes mais fanfarrões de Lisboa – serviram-me uma vez um leite-creme com uma espuma de qualquer coisa, à qual chamo espuma de qualquer coisa porque obviamente sabia tanto a essa coisa que eu nem me consigo lembrar do que era. No Manifesto, onde ao contrário do Pedro e o Lobo sabiam inventar sem comprometer a integridade dos produtos, serviam um arroz de pato delicioso, só que complementado com espuma de parmesão que sabia a água estagnada. Também me intriga particularmente a utilização anárquica das ervas aromáticas polvilhadas por cima dos coitados dos pratos, mas vamos regressar ao argumento.
Há sempre um risco inerente a assumir-se que alguém sabe mais sobre uma coisa que nós e que é o de afinal essa pessoa não saber mesmo mais que nós. Não devemos assumir que, em princípio, vamos saber mais sobre cozinha do que uma pessoa que fez disso profissão, mas também não vamos assumir que isso nunca há-de acontecer. Há casos em que a utilização deste ou daquele ingrediente cheira logo distúrbio psicótico do cozinheiro. Comam naquele restaurante do Olivier, no Tivoli, e vão ver.
A recomendação aqui é, como em quase tudo na comida, seguir a intuição. Deve partir-se de uma posição de tolerância e de confiança para com o trabalho do cozinheiro. Esta é a intuição mas imediata, acreditar que aquela pessoa pensou devidamente aquele prato e que aquela combinação de ingredientes ou resulta de uma interiorização dos processos milenares da cozinha ou resulta da um trabalho ponderado e testado de subversão desses processos. A verdade é que quando isto não acontece a nossa intuição vai, na maioria dos casos, alertar-nos para o embuste, a não ser que a pessoa tenha por costume armar-se em pato bravo de cardápio.   
Há um outro aspecto que os dois autores recomendam e que me parece ser uma das ideias mais importantes a reter: uma postura activa no restaurante. Isto tem vários corolários. Convém prestar alguma atenção às recomendações que nos são feitas mas, em última análise, o nosso apetite e a inclinação da nossa vontade é que deve prevalecer. Não quero com isto dizer que as recomendações dos empregados correspondem normalmente a armadilhas de preços, mas algumas vezes é mesmo isso que acontece. Também é importante não ter vergonha de perguntar o que leva cada prato, se isso não se encontra explícito na ementa. Há poucas coisas mais insensatas que pedir um prato com um ingrediente que se desconhece de todo.
Mas aquilo que importa mais, na defesa e manutenção de uma atitude activa e salutar, é dizer que não se gostou deste ou daquele prato ou deste ou daquele aspecto do serviço quando somos questionados sobre tal. É ridículo convencionarmos que o aplauso ou elogio são merecidos a partir do momento em que o nosso dinheiro é utilizado para pagar. Nunca o cliente deve ter vergonha de dizer que não gostou de um prato com medo de parecer ignorante. A posição de um cliente é a de alguém a quem é devido um serviço, não é o mesmo que ir a um museu. Apesar de alguns chefs pensarem que sim, que as pessoas têm que ir ao seu restaurante como quem vai ver uma obra de arte, cabe aos clientes reconduzi-lo à mais básica humildade: é comida, primeiro é suposto saber bem e depois logo vamos pensar se estava bonito ou não. 
Quero também acrescentar algumas recomendações da minha lavra da minha lavra. Já vou tendo amigos que, voluntariamente, se puseram a povoar a terra com bebés e, também, alguns amigos que, involuntariamente, fizeram o mesmo por estarem voluntariamente bêbados ou serem voluntariamente ignorantes. Alguns, inclusive, começaram a levar esses bebés aos jantares que combinam comigo. Sinto-me, por isso, na obrigação de escrever umas quantas linhas a aconselhar esses meus amigos.
Por favor, evitem levar crianças quando jantam fora. O único restaurante a que eu não me importo de ir e que está verdadeiramente preparado e, já agora, interessado em receber as crianças é a vossa própria casa. Quando eu era criança os meus pais, depois de muita insistência minha, acabaram por perder o bom senso e começaram a levar-me aos jantares de amigos. E eu, apesar de não me lembrar de tudo, acho que aproveitei essas oportunidades para entornar sumol em cima das mesas e das roupas, para pedir um prato e depois embirrar que afinal queria a comida que outra pessoa tinha pedido, para vomitar, para dar trambolhões e ser levado de urgência ao hospital porque bati com a mona num bloco de betão e depois de chorar me lembrei de dizer que estava sonolento.
Não pensem que sou egoísta, até porque isto é também uma tortura para as crianças. Não deixei de ser puto assim há tanto tempo que já não me consiga lembrar da tortura psicológica e física que às vezes representava uma ida a um restaurante todo pensado para gente adulta. Na maioria dos casos, as crianças sofrem mais nos restaurantes do que um adulto pode sofrer com a sua presença e quando isso não acontece pode ser um indício de que o vosso filho é um génio do mal.
Eu era, já em criança, um caso perdido. Apesar de todo o tormento físico que isso necessariamente representava, o prazer da comida e, claro, a noção perfeita de que estou a chatear alguém perto de mim, cedo se começaram a sobrepor. São, até hoje, os dois elementos que mais profundamente definem o meu carácter. Não queiram isto para os vossos filhos, a maioria não consegue chegar aqui sem uma úlcera e 10 quilos de peso em excesso. E se eu já aqui estou sem ter a saúde particularmente danificada, apesar de tudo, arrisco-me a dizer que é porque cresci para o lado do mal e, por dentro, a minha alma, ou lá o raio que seja, é balofa e psicótica.

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