terça-feira, 18 de novembro de 2014

Bater no ceguinho (Guilty by Olivier)




But I don't care if I fuck up
I'm going on a date
With a rich white lady
Ain't life great?
Elliott Smith

 
Na versão original deste texto, que publiquei já há uns anos, começava com uma referência a um filme italiano chamado “Gianni e as mulheres”. Dizia eu que na altura tinha achado alguma piada ao filme, mas também que daí a uns meses me iria esquecer de todo que o vi. E esqueci, de tal forma que, quando decidi reescrever este texto para aqui, até demorei algum tempo a recordar o argumento do filme.
Disse também – e agora até reforço – que costumo chamar a estes momentos de relativo entretenimento que não têm qualquer hipótese de perenidade na minha memória os momentos Olivier. Isto acontece porque ao fim de um ou dois meses de ter ido a um dos restaurantes do Olivier esqueço completamente o que experimentei e o que senti. E quando digo esquecer completamente, é mesmo isso que quero dizer, porque por mais que me esforce, quando não deixo testemunho escrito sobre isso, os pratos que são servidos nos espaços do Olivier evaporam-se da minha cabeça. Nunca tentei hipnotismo ou regressões, mas a minha intuição é que mesmo com isso seria incapaz de recordar, porque o que acontece não é uma espécie de reclusão dessas imagens na minha memória, é mesmo um problema de desvanecimento. Talvez não desapareça tudo, porque recordo vagamente um molho muito espesso e enjoativo a arruinar uma carne muito bem cozinhada. Podia ser black angus ou kobe, já não me lembro. Se calhar nem era carne. Se calhar era peixe. Das sobremesas não recordo sequer uma, o que é preocupantemente estranho, porque se há coisa que raramente desaparece da minha memória são os doces, ainda que maus. Uma vez cheguei a jurar a um amigo que tinha comido a melhor peça de sushi no Yakuza, mas ao fim de uns minutos de conversa dei-me conta de que afinal estava a confundir e tinha sido outro sítio que não vou agora mencionar porque ando profundamente chateado com eles.
Felizmente, nas duas últimas vezes que fui a um restaurante do Olivier – ao Guilty –, levei o meu caderno de apontamentos e pude colocar nele todas as observações que, com o tempo, iriam parar ao fundo, negro e desolado buraco do esquecimento. Este texto é, por isso, um revisitar (ampliado) dos apontamentos que na altura tomei a propósito deste restaurante, uma espécie de visita guiada pelas impressões que, in loco, o espaço e a comida me deixaram.
Os meus primeiros apontamentos são sobre o bom aspecto do espaço e das pessoas que o enchem. Se há coisa que se pode – e deve – dizer a propósito do Guilty é que é um restaurante em que quase só vemos dois tipos de pessoas: as que têm bom aspecto (e mau gosto) ou as que têm dinheiro (e mau gosto). Às vezes vemos pessoas que conjugam o bom aspecto com o dinheiro, mas confesso que ainda estou para perceber o que essas lá vão fazer. É que o Guilty é um desses restaurantes a que, muitas vezes, nem se vai para comer.
Do que anotei parece que  vi muitos advogados/gestores pós-30, acompanhados por Porsches Carrera mas daqueles que têm carne e osso, vestidos bonitos e que comem, mas só de vez em quando. Pelo menos foi isto que eu escrevi. Também escrevi que gostei do aspecto do restaurante, principalmente dos sofás (quando não tenho nada que fazer dá-me para isto).
Mas e a comida, que no fundo é o que interessa num restaurante?
Para vos dar uma ideia do tipo de restaurante de que estamos a falar, posso dizer-vos que o Guilty, basicamente, serve pizzas, hambúrgueres e massas, sendo, assim, óbvio que a inspiração do menu deve foi conteúdo da minha arca frigorífica quando vim estudar para Lisboa. No fundo, é uma espécie de restaurante para jantares de turma, só que numa versão evoluída, sofisticada, com bons empregos e com estrogénio de muito melhor qualidade.
A experiência que fui adquirindo a comer em Lisboa ensinou-me que pizza é no Casanova – ou no Esperança ou no Luca, se o Casanova estiver a abarrotar e a vontade de comer pizza for incomportável – e que massa é no Casa Nostra ou no Mezzaluna. Por isso, nestas duas vezes que fui ao Guilty pedi hambúrguer (puta que pariu a moda do hambúrguer em Lisboa). Numa delas um hambúrguer Guilty (ovo, queijo cheddar, cebola confitada e bacon – no fundo, tudo aquilo a que um AVC tem direito), na outra um Italiano (cogumelos porcini, queijo brie, maionese de trufa e rúcula). Graças às fantásticas pessoas que nessas duas vezes me acompanharam, consegui ainda assim provar outros pratos, como a pizza Inferno – o equivalente da fantástica Diavola do Casanova – e a massa Gamberini, que leva camarão, tomate cherry, natas, manjericão, coentros e limão.
A pizza estava boa, mas não tão boa assim. Sou um fã hardcore do Casanova, num misto de qualidade efectiva e de um certo excesso de Lambrusco em noites de concertos no Lux, o que criou em mim uma relação mais emocional que gustativa com esta pizzaria, mas apesar disso confio plenamente na minha capacidade de julgar pizzas cozinhadas fora do forno do Cais da Pedra à Bica-do-Sapato. E esta do Guilty não lhes chega aos calcanhares. Quanto à massa, apenas anotei isto: “absolutamente indiferente”. Imagino que não estivesse desastrosa, caso contrário teria escrito um impropério qualquer contra o Olivier – porque cozinhar mal uma massa preenche o conceito material de crime –, mas confesso que não me lembro nem de ter provado a massa, nem sequer do aspecto do prato, pelo que só posso seguir aquilo que, na altura, escrevi.
Da vez que pedi o hambúrguer Guilty, na primeira tentativa vinha quase cru e eu temi que ao ensaiar o primeiro corte com a faca o gajo começasse a mugir. Poderia agora escrever que pedi para o passarem um pouco mais, mas acontece que estava tão cru que, na verdade, o que eu pedi foi para desta vez experimentarem cozinhá-lo. Na segunda tentativa o hambúrguer vinha bem cozinhado, mas esqueceram-se de trocar o pão que, por isso, vinha ensopado em sangue. À terceira veio tudo como uma pessoa tem direito e o hambúrguer até estava bem bom, com entrada no meu top dos melhores hambúrgueres de Lisboa. A carne é de boa qualidade e, apesar do erro inicial, depois veio cozinhada no ponto certo e razoavelmente suculenta. Claro que se pode sempre dizer que um dos problemas do Guilty é que a carne de melhor qualidade não está a ser servida nos pratos, mas isso é outra história. A combinação entre o queijo cheddar e a cebola confitada não é a coisa mais original do mundo, mas, mesmo assim, é vencedora. O bacon estava crocante, saboroso e não pingava gordura.
Já o hambúrguer Italiano é uma porcaria. É perfeitamente normal – e até saudável – que um hambúrguer com cogumelos porcini e maionese de trufas saiba um pouco a terra. Faz sentido. O que não faz sentido algum é que com uma combinação de ingredientes que, à partida, parece absolutamente fabulosa, o resultado final seja algo cuja primeira dentada nos dá a sensação de estarmos a mastigar uma peça de roupa interior que foi usada durante três dias consecutivos e depois enterrada no meio de um bosque durante duas semanas. A rúcula, pensaram eles, é suficiente para disfarçar o mofo geral a que aquilo sabe, mas o efeito é mais ou menos o mesmo que borrifar com perfume uma pessoa que não toma banho há uma semana. Não vai melhorar nada.

Há algo curioso a propósito dos restaurantes do Olivier e que os torna preocupantemente assimiláveis àqueles participantes de reality shows que, apesar de odiosos, têm lugar de destaque na imprensa especializada. Cada vez que um restaurante do Olivier é inaugurado, tanto os jornais como a televisão dão destaque ao evento, como se o anterior empreendimento tivesse sido um sucesso que, na prática, não foi. E apesar de já contar com um número significativo de más críticas – e alguma chacota –, o homem sobrevive enquanto empresário de restaurantes. Esta capacidade de resistência não deve ser menosprezada mas, ao mesmo tempo, deve servir para que quem escreve sobre restaurantes em Portugal – e quem a eles vai – consiga perceber que uma parte significativa do universo gastronómico está entregue a pessoas que são, em termos técnicos e de vestuário, um empresário português, mas que não percebem absolutamente nada de comida. Não quero afirmar taxativamente que este é o caso do Olivier, apesar de os indícios estarem lá para quem os quiser ver, mas há algo nítido quando se entra num dos seus restaurantes e o Guilty não é excepção: não foi a paixão pelos ingredientes e pela comida que serviu de base àquela ideia. E por isso mesmo o pai (o Michel da Costa) teve uma estrela Michelin e o filho apenas tem um pneu.

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