quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Tasca Urso revisitada


para o Diogo, pela amizade e, também, por me ter apresentado a Tasca Urso

I
(vamos lá falar sobre aquelas miúdas italianas)

Ao ler o texto fantástico da Ana sobre a Ruth Reichl lembrei-me que já não escrevo sobre restaurantes há demasiado tempo. Em tempos tive um blogue, onde escrevia muito sobre restaurantes e, tanto quanto consigo recordar, isso dava-me um prazer enorme. Com o tempo fui mudando e cada vez me foi interessando mais escrever sobre comida e menos sobre restaurantes. Um dia hei-de gastar uns quantos parágrafos para entender esta transformação que me levou de invejar os meus críticos gastronómicos de eleição a invejar os cozinheiros, mas hoje a ideia é outra. Quando decidi que escrever sobre comida iria ser um traço definidor das linhas em que me desenho, isso aconteceu por causa de um restaurante e esta é a história desse momento, do meu nascimento enquanto escritor de comida.
Aquilo que para algumas pessoas é insuportável ou inconcebível acontece, por vezes, agradar-me. É muito mais uma coincidência curiosa da forma como as minhas estruturas de deleite se constroem do que um desejo blasé por peculiaridade. E, no entanto, esse desejo está lá, alvejado tantas vezes, até, pelo tal masoquismo gastronómico de que já aqui falei. A minha relação amorosa com a comida – é a melhor expressão que tenho, apesar de estar consciente da inconveniência de algumas das implicações visuais do que acabei de dizer – tem, por isso, um segmento dedicado ao sofrimento.
Mas o masoquismo gastronómico não é só uma questão de sofrimento com produtos estranhos ou nojentos, é algo que se alarga também às actividades gastronómicas. A maioria das pessoas detesta jantar fora sozinha. Eu não. Jantar fora sozinha é uma coisa que me agrada. Os meus horários de trabalho, muitas vezes, obrigam a que isto aconteça, mas nunca foi só uma questão de hábito ou falta de alternativa, é mesmo um prazer. Nunca consegui reparar em tantos pormenores interessantes dos restaurantes como das vezes em que estou sozinho, como também não me lembro de ter visto tanta gente atraente ou curiosa nas vezes em que estou acompanhado. A solidão põe-nos em contacto invasivo com a vizinhança. E há ainda outra vantagem, a ausência de comunicação directa, a não obrigatoriedade de um diálogo com a pessoa do lado ou da frente, é uma espécie de alcaloide para a imaginação.
Há, contudo, uma excepção: as noites de sábado. Jantar fora e sem companhia numa noite de sábado é um convite a duas sensações incompatíveis com uma boa digestão: a depressão e a esperança ansiosa. Não há muita gente com fibra para aguentar o peso de uma refeição nocturna solitária e muito menos há quem aguente isso num sábado. As pessoas que jantam fora num sábado são as mais preparadas – pelo menos neste campeonato – e, por isso mesmo, as mais desiludidas, as mais amarguradas, as mais impenetráveis. A certeza de que estamos a oferecer aos outros o triste espectáculo da nossa solidão transforma-nos num espelho em que eles vêm as suas próprias angústias reflectidas.
E depois há a treta da esperança que funciona como anulador de enzimas. Os olhos saltam entre a entrada do restaurante e as outras mesas, à espera que chegue alguém conhecido ou, então, que uma cena merecedora de versão cinematográfica se concretize e as duas raparigas morenas e italianas que estão na mesa do lado, a partilhar uma garrafa de Fita Preta, me convidem para jantar com elas e se interessem verdadeiramente por aquilo que tenho para lhes dizer.
Ali estavam elas, parecidas uma com a outra e ainda assim atraentes por motivos distintos, a falar italiano com a minha imaginação – e com o meu desejo. E ali estava eu, à distância de uma palavra, caso a ela me atrevesse, a observar aquele espaço perfeito e afiado em que o vestido branco de uma delas terminava e começava uma coxa bronzeada e fulgurante, um lugar estrangeiro e inóspito para a minha timidez. Poucas vezes desejei tanto ter algo perfeito para dizer ou algo especial em mim que pudesse utilizar como passaporte para transpor aquela fronteira de sensualidade desmesurada e dois corpos de um verão absurdo, provavelmente dispostos àquilo que de mais belo existe, embora não necessariamente comigo. Agora que penso nisso, talvez pudesse ter-lhes dito isto mesmo e, claro, tentando a minha sorte. Teria neste momento o conforto da temeridade em meu redor. Assim, fico nesta angústia de acabar por acertar quase sempre, mas com demasiado atraso.
Isto não é uma criação literária. Aconteceu-me mesmo, na Tasca Urso, e na altura pensei que nunca mais seria capaz de lá regressar sem me sentir deprimido. Uma situação destas pode estragar um restaurante para o resto das nossas vidas e esse é, também, um dos riscos de jantar fora num sábado, mas, aparentemente, quando lá regressei outra vez, uma boa refeição salvou-me o restaurante e todas as minhas futuras idas.
Devo à Tasca Urso a minha vontade de escrever sobre comida. Escrever é, pelo menos nesta área, uma forma de estudar as sensações. Não escrevo sobre comida porque adoro comida, se bem que adoro comida. Não é o amor que me motiva a escrita, não escrevo para manifestar a minha adoração por um bife com a crosta deliciosamente caramelizada e regada em manteiga ou por uma mousse de chocolate com pequenos torrões de açúcar mal derretidos. Não é para partilhar com quem me lê o novo restaurante pelo qual estou obcecado ou uma forma assombrosa de fazer caldo de marisco para o meu risotto de gambas, gengibre e limão. Escrever tem origem na incompreensão, só é importante escrever quando as palavras faltam ou são insuficientes na medida da sensação e, por isso mesmo, há que ir para casa e perder todo o tempo que tenho à procura delas.
Na Tasca Urso, quando lá comi pela primeira vez, aconteceu-me uma dessas refeições que me deixou sem palavras. E por mais dignos que sejam todos os jantares na Tasca Urso (continua a ser um dos meus restaurantes preferidos para ir no Verão em Lisboa), acompanha-me sempre que lá vou uma certa tristeza, por saber que nunca vou voltar a sentir-me como da primeira vez, a menos que eu seja como aqueles gajos que são atingidos por raios mais do que uma vez na vida. O que comi nessa vez? Se não me falha a memória – e, para isto, a memória não me costuma falhar – comi pimentos padrón, rolos brick de queijo com chutney de frutos silvestres, lulinhas fritas em alho, pataniscas de bacalhau com molho de iogurte, morcela com migas gatas, camarões em molho de laranja, alheira com doce de tomate e queijo de cabra, empadinhas de leitão e, como sobremesa, espera-maridos e mousse de limão. Que a quantidade de pratos não vos alarme. Só gulosos eramos oito. Mas ainda assim sei que comi muito e, também, que misturei no prato várias coisas ao mesmo tempo, com enorme sucesso no caso do chutney de frutos silvestres com a morcela e com as empadinhas, uma das melhores decisões que já tomei e que repeti sempre lá voltei.
Curiosamente, esta refeição que despertou em mim a vontade de escrever sobre comida nunca foi passada a escrito. Não é que não tenha tentado, que não me tenha sentado à mesa a escavar no meu corpo as palavras que ela já sabia mas que eu ainda não tinha conseguido encontrar. Nunca lá cheguei e, com o tempo, esta refeição começou a entrar naquele espaço da memória que se assemelha ao bosque do Robert Frost: “The woods are lovely, dark and deep./ But I have promises to keep,/ and miles to go before I sleep,/ and miles to go before I sleep.”.

II
(Vamos lá falar sobre a Tasca Urso)

Face ao fracasso, face à já longa fila de tentativas frustradas de escrever sobre essa refeição, à qual este texto necessariamente se vai juntar, apenas posso explicar porque é que continuo a ir à Tasca Urso mesmo sabendo que nunca mais vais ser igual. É difícil regressarmos aos sítios onde fomos felizes sem qualquer esperança de repetição. É como ouvir uma música que associamos a uma namorada que nos deixou para sempre.
Apesar disto, há razões óbvias para invariavelmente regressar à Tasca Urso. Os donos são simpáticos e acolhedores como já não é comum. Trabalha lá um dos melhores empregados-de-mesa de Lisboa, pelo menos no que diz respeito à capacidade de equilibrar, em doses razoáveis, o bom humor e a competência. É, para melhorar ainda, um excelente conselheiro de vinhos.
Mas isto não interessa muito. A localização, a competência da equipa e o arranjo do espaço – a Tasca Urso tem um pátio interior lindíssimo, onde se pode comer quando não está muito frio –, faz tudo parte do aparato sedutor de um restaurante. Acontece que sem pratos bons, um restaurante com outras características interessantes é a mesma coisa que uma lingerie perfeita posta num esqueleto. Neste caso, confesso que já gostei mais do menu da Tasca Urso, tanto no sentido de que já houve tempos em que era melhor cozinhado, como no sentido de que já me cansei um pouco dele e que, ao fim destes quatro anos que já passaram desde a primeira vez que lá fui, houve muito pouca inovação. Ainda assim, há um conjunto de pratos que são apostas completamente seguras: as pataniscas, as empadinhas e as duas sobremesas-estrela, o espera-maridos e a mousse de lima.
As pataniscas vencem em três frentes. A textura da massa assemelha-se à das farturas de feira e o bacalhau está sempre bem temperado. Só com estas duas boas características assim já seria um prato vencedor. Mas depois acompanham com um molho de iogurte muito bem preparado, com pequenos pedaços de tomate, cebola e salsa. A combinação entre o sabor da massa e o do molho de iogurte é o passo final em direcção a um triunfo absoluto. Se um dia for condenado à morte, a última refeição que vou pedir vai incluir, de certeza, estas pataniscas de bacalhau com molho de iogurte. Já as empadinhas de leitão estão nas antípodas das pataniscas, em termos de espectro gastronómico. Onde imperava o sabor fresco e ácido do iogurte agora destaca-se a combinação entre doce e picante, seja no próprio chutney, seja nas empadas. Depende um pouco da sorte apanhar bocados mais tenrinhos de leitão ou não, mas como está muito bem cortado, salteado e temperado com especiarias, as hipóteses de não saberem bem são praticamente nulas.
No que toca às sobremesas, há que escalonar. O espera-maridos é a melhor sobremesa da Tasca Urso e uma das melhores de Lisboa. É um doce de ovos, açúcar e canela, com uma consistência ligeiramente mais espessa que um creme e que passa por um processo de confecção que já tentei reproduzir em casa sem qualquer proximidade ao êxito. Não vou explicar exactamente como se faz porque a verdade é que eu não sei ao certo. Como disse, tentei fazê-lo em casa, seguindo umas indicações mais ou menos raptadas à dona do restaurante, e aquilo não ficou sequer parecido. A história do nome, segundo me contaram é que é curiosa. Chama-se espera-maridos porque é um doce que demora muito a fazer e que, por isso, ocupava o tempo das senhoras que ficavam em casa à espera que o marido regressasse do café. A mousse de lima vem em segundo lugar. Para quem prefere sobremesas mais frescas e menos enjoativas, é a melhor solução quando se vai à tasca urso. Contudo, algumas vezes carregam demasiado nas raspas de lima e aquilo dá uma desagradável sensação de se estar a mastigar palha ácida.
Um outro pormenor interessante da Tasca Urso são os pimentos padrón. Este prato é muito mais um jogo do que comida. Mais do que o sabor, interessa o risco do picante em que um gajo entra com os amigos quando se pedem os pimentos. Dizem que um em cada cinco – acho que é isto, mas não tenho a certeza – é absurdamente picante e, à custa disso, as pessoas que os pedem estão, supostamente, a entrar num jogo em que no final alguém vai ficar com a boca completamente anestesiada e não vai conseguir saborear o resto da refeição. Mas isto é em teoria, ou melhor, em mito. Porque na maioria dos sítios em que servem pimentos padrón isto nunca acontece. Na maioria dos sítios comer pimentos padrón é como jogar à roleta-russa com uma pistola sem balas, é ver um filme de terror de olhos fechados, ou seja, não representa qualquer risco para a saúde. Na Tasca Urso não. Pode até não ser um em cada cinco – pode muito bem ser um em cada dez –, mas o pimento do demónio lá acaba por aparecer e destrambelhar a refeição de um pobre coitado com menos sorte que os outros. Já aconteceu, até, num mesmo prato virem dois desses e, fazendo prova da pouca fortuna que algumas pessoas têm, calharam ambos à mesma pessoa.

III
(Vamos lá falar sobre os melhores restaurantes de Lisboa)

E já que falo sobre restaurantes, qual é, para mim, o melhor restaurante de Lisboa? Comer em Lisboa é coisa que tenho feito nos últimos dez anos da minha vida, seja em restaurantes, seja na minha casa ou na de amigos, e já devo ter, por isso, uma ideia formada relativamente a esse aspecto. E tenho.
Não há forma alguma de eu vos provar que a Taberna Ideal e a Petiscaria Ideal são o melhor conjunto de restaurantes de Lisboa. Mas eu sei que a Taberna e a Petiscaria são os melhores restaurantes de Lisboa. Reparem numa coisa, e isto tem toda a relevância, eu disse que sei que são os melhores restaurantes de Lisboa, em vez de dizer que acredito nisso ou que tenho fé nisso.
Sendo este um restaurante com um conceito de partilha muito vincado, a minha condição, a de ter ido sempre acompanhado por uma pessoa apenas, proporcionou-me a experiência mais cirúrgica que aqueles restaurantes podem oferecer: a escolha – recomendada – de apenas três pratos para partilhar. Na Taberna isto corresponde a uma tiborna, uma entrada e um prato principal. Na Petiscaria é diferente, porque a variedade é maior, mas também não se afasta muito do conceito.
Da primeira vez que fui à Taberna o comportamento dos empregados deixou-me pouco confortável. Ao crescer fui-me tornando um adulto que, no primeiro contacto, aplica demasiada seriedade e distância e, por isso, toda aquela filosofia de restauração, simuladamente descontraída – mas completamente ensaiada – chocou com o meu feitio. Quem por lá passou mais que uma vez já deve saber de cor a lengalenga: “olá, eu sou a Tânia, o que servimos é português, mas como em tudo, há uma excepção e essa excepção é a coca-cola, bla bla bla bla”. A partir da terceira vez tentei impedir a ladainha de acontecer, explicando que já tinha lá ido umas vezes, mas nunca consegui que isso acontecesse. Em vez de se intimidarem com a minha frieza e com a rapidez da minha interrupção, a descontração dos empregados conseguiu sempre empurrar-me para um silêncio resignado. Ao fim de um tempo conformei-me com aquilo, como quem se conforma com o facto de ter que desligar o chuveiro quente numa manhã demasiado fria de inverno. A vida não pode parar porque eu fico mesmerizado a olhar para o vapor que as extremidades do meu corpo vão libertando, tal como o meu prazer gastronómico não pode ser interrompido porque ao fim de uma dezena de vezes a ladainha dos empregados continua a constranger-me. O desconforto emocional, tal como o frio de uma manhã de inverno, têm que puxar pela minha dimensão estoica.
Talvez esteja até a exagerar. Talvez nem seja bem uma questão de resignação com o desconforto. Agora que penso nisto – estes textos têm esse objectivo, fazer-me pensar sobre aquilo que se passa enquanto tenho prazer a comer –, há uma outra explicação. Cada vez mais tendo a observar os restaurantes a partir de uma concepção organicista, como se no conjunto a sua estrutura com mais potencialidades de analogia fosse um corpo humano. Os restaurantes são entidades com uma componente visceral muito marcada, ao ponto de, para o melhor e para o pior, desenvolver uma identidade biológica. No caso da Taberna – e da Petiscaria –, esta performance dos empregados faz parte da estrutura do restaurante como um pâncreas faz parte de um corpo. E tal como esse órgão, não sei muito bem para o que é que serve e até imagino que não tem nada a ver com o prazer, mas está lá para manter vivas as partes que desempenham essa função mais nobre.
Tenho-me furtado diligentemente àquilo que seria exigível logo à partida a um apreciador de comida que se aventura a dizer que determinado estabelecimento é o melhor restaurante de Lisboa. Em parte isto acontece porque não consigo prová-lo e, no entanto, é mesmo o melhor restaurante de Lisboa. Posso até acrescentar que a forma como o espaço está organizado não é lá muito confortável. Não se trata de um sítio ao qual, em teoria, eu tivesse grande vontade de ir, quanto mais de passar lá umas duas horas. Estes dois restaurantes são como aquelas pessoas que se tornam atraentes e enternecedoras porque conseguem retirar todas as consequências de um pormenor perfeito com o qual foram abençoadas.
A Taberna e a Petiscaria são o melhor restaurante de Lisboa porque é impecável a forma como exploram a sua característica mais perfeita: o trabalho com os ingredientes. Já provei uma imensidão de pratos que por lá se cozinham e nunca comi um que estivesse sequer perto de resvalar para o patamar do meramente aceitável. Tudo o que ali comi estava sempre à vontade nas divisões da perfeição. Na Taberna, os melhores pratos que provei foram um cachaço de porco e uma costeleta de novilho. Qualquer um dos dois, literalmente, se desfazia na boca, como se o génio gastronómico que habita aquela cozinha soubesse uma forma de cozinhar carne que mais ninguém no mundo faz sequer ideia como se desenvolve. Na Petiscaria ainda não consegui provar sequer metade da ementa, mas se por lá se servir alguma coisa melhor que o prego e o atum braseado, sou gajo para começar a prestar culto religioso àqueles cozinheiros. O atum braseado é dos meus pratos preferidos nos lugares que o sabem fazer bem. A diferença de texturas e temperaturas entre a crosta exterior crocante e o interior cru é das melhores surpresas que se podem dar ao palato. Claro que, como em muitos outros pratos, as versões da Taberna e da Petiscaria têm ainda mais camadas de delicioso – no caso do atum é um molho ligeiramente adocicado co mel e um acompanhamento de batatas-doces salteadas. O prego, ao contrário do que os empregados garantem, não é o melhor de Lisboa, porque o melhor prego de Lisboa é o Yuppie do Prego da Peixaria. É, ainda assim, um prego absolutamente delicioso e com cogumelos Portobello.
Agora o reverso da medalha. Tal como se diz na ladainha dos empregados, tudo tem uma excepção. No caso da Taberna e, também, da Petiscaria são as sobremesas. Vez atrás de vez, fui experimentando o que por ali se serve e nunca comi nada que merecesse sequer figurar na mesma ementa que o resto dos pratos. O crumble gratinado é pastosamente enjoativo e a tarte de chocolate branco é do mais indiferente que já comi em termos de doçaria. Não vale a pena, contudo, fazer disto uma grande questão. Não se come sobremesa e, pronto, a perfeição está reestabelecida.

Oinc oinc

«Naturalmente que tenho a minha confiança e auto-estima muito elevada em relação à qualidade do que faço porque os meus livros têm críticas altamente elogiosas no suplemento Babelia do El País, no Times Litterary Supplement, no Guardian, no Independent, na Folha de São Paulo, no New York Times, no Le Monde, no Figaro, no La Repubblica. O meu último romance foi finalista do Prémio Femina, em França, um dos mais prestigiados prémios para autores estrangeiros na Europa. E ainda não tinha 40 anos quando isso aconteceu. Não tenho nada a provar.»
(José Luís Peixoto, entrevista à Sol/Tabu, de 31/10/2014)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Assuntos de barba



Bater no ceguinho (Guilty by Olivier)




But I don't care if I fuck up
I'm going on a date
With a rich white lady
Ain't life great?
Elliott Smith

 
Na versão original deste texto, que publiquei já há uns anos, começava com uma referência a um filme italiano chamado “Gianni e as mulheres”. Dizia eu que na altura tinha achado alguma piada ao filme, mas também que daí a uns meses me iria esquecer de todo que o vi. E esqueci, de tal forma que, quando decidi reescrever este texto para aqui, até demorei algum tempo a recordar o argumento do filme.
Disse também – e agora até reforço – que costumo chamar a estes momentos de relativo entretenimento que não têm qualquer hipótese de perenidade na minha memória os momentos Olivier. Isto acontece porque ao fim de um ou dois meses de ter ido a um dos restaurantes do Olivier esqueço completamente o que experimentei e o que senti. E quando digo esquecer completamente, é mesmo isso que quero dizer, porque por mais que me esforce, quando não deixo testemunho escrito sobre isso, os pratos que são servidos nos espaços do Olivier evaporam-se da minha cabeça. Nunca tentei hipnotismo ou regressões, mas a minha intuição é que mesmo com isso seria incapaz de recordar, porque o que acontece não é uma espécie de reclusão dessas imagens na minha memória, é mesmo um problema de desvanecimento. Talvez não desapareça tudo, porque recordo vagamente um molho muito espesso e enjoativo a arruinar uma carne muito bem cozinhada. Podia ser black angus ou kobe, já não me lembro. Se calhar nem era carne. Se calhar era peixe. Das sobremesas não recordo sequer uma, o que é preocupantemente estranho, porque se há coisa que raramente desaparece da minha memória são os doces, ainda que maus. Uma vez cheguei a jurar a um amigo que tinha comido a melhor peça de sushi no Yakuza, mas ao fim de uns minutos de conversa dei-me conta de que afinal estava a confundir e tinha sido outro sítio que não vou agora mencionar porque ando profundamente chateado com eles.
Felizmente, nas duas últimas vezes que fui a um restaurante do Olivier – ao Guilty –, levei o meu caderno de apontamentos e pude colocar nele todas as observações que, com o tempo, iriam parar ao fundo, negro e desolado buraco do esquecimento. Este texto é, por isso, um revisitar (ampliado) dos apontamentos que na altura tomei a propósito deste restaurante, uma espécie de visita guiada pelas impressões que, in loco, o espaço e a comida me deixaram.
Os meus primeiros apontamentos são sobre o bom aspecto do espaço e das pessoas que o enchem. Se há coisa que se pode – e deve – dizer a propósito do Guilty é que é um restaurante em que quase só vemos dois tipos de pessoas: as que têm bom aspecto (e mau gosto) ou as que têm dinheiro (e mau gosto). Às vezes vemos pessoas que conjugam o bom aspecto com o dinheiro, mas confesso que ainda estou para perceber o que essas lá vão fazer. É que o Guilty é um desses restaurantes a que, muitas vezes, nem se vai para comer.
Do que anotei parece que  vi muitos advogados/gestores pós-30, acompanhados por Porsches Carrera mas daqueles que têm carne e osso, vestidos bonitos e que comem, mas só de vez em quando. Pelo menos foi isto que eu escrevi. Também escrevi que gostei do aspecto do restaurante, principalmente dos sofás (quando não tenho nada que fazer dá-me para isto).
Mas e a comida, que no fundo é o que interessa num restaurante?
Para vos dar uma ideia do tipo de restaurante de que estamos a falar, posso dizer-vos que o Guilty, basicamente, serve pizzas, hambúrgueres e massas, sendo, assim, óbvio que a inspiração do menu deve foi conteúdo da minha arca frigorífica quando vim estudar para Lisboa. No fundo, é uma espécie de restaurante para jantares de turma, só que numa versão evoluída, sofisticada, com bons empregos e com estrogénio de muito melhor qualidade.
A experiência que fui adquirindo a comer em Lisboa ensinou-me que pizza é no Casanova – ou no Esperança ou no Luca, se o Casanova estiver a abarrotar e a vontade de comer pizza for incomportável – e que massa é no Casa Nostra ou no Mezzaluna. Por isso, nestas duas vezes que fui ao Guilty pedi hambúrguer (puta que pariu a moda do hambúrguer em Lisboa). Numa delas um hambúrguer Guilty (ovo, queijo cheddar, cebola confitada e bacon – no fundo, tudo aquilo a que um AVC tem direito), na outra um Italiano (cogumelos porcini, queijo brie, maionese de trufa e rúcula). Graças às fantásticas pessoas que nessas duas vezes me acompanharam, consegui ainda assim provar outros pratos, como a pizza Inferno – o equivalente da fantástica Diavola do Casanova – e a massa Gamberini, que leva camarão, tomate cherry, natas, manjericão, coentros e limão.
A pizza estava boa, mas não tão boa assim. Sou um fã hardcore do Casanova, num misto de qualidade efectiva e de um certo excesso de Lambrusco em noites de concertos no Lux, o que criou em mim uma relação mais emocional que gustativa com esta pizzaria, mas apesar disso confio plenamente na minha capacidade de julgar pizzas cozinhadas fora do forno do Cais da Pedra à Bica-do-Sapato. E esta do Guilty não lhes chega aos calcanhares. Quanto à massa, apenas anotei isto: “absolutamente indiferente”. Imagino que não estivesse desastrosa, caso contrário teria escrito um impropério qualquer contra o Olivier – porque cozinhar mal uma massa preenche o conceito material de crime –, mas confesso que não me lembro nem de ter provado a massa, nem sequer do aspecto do prato, pelo que só posso seguir aquilo que, na altura, escrevi.
Da vez que pedi o hambúrguer Guilty, na primeira tentativa vinha quase cru e eu temi que ao ensaiar o primeiro corte com a faca o gajo começasse a mugir. Poderia agora escrever que pedi para o passarem um pouco mais, mas acontece que estava tão cru que, na verdade, o que eu pedi foi para desta vez experimentarem cozinhá-lo. Na segunda tentativa o hambúrguer vinha bem cozinhado, mas esqueceram-se de trocar o pão que, por isso, vinha ensopado em sangue. À terceira veio tudo como uma pessoa tem direito e o hambúrguer até estava bem bom, com entrada no meu top dos melhores hambúrgueres de Lisboa. A carne é de boa qualidade e, apesar do erro inicial, depois veio cozinhada no ponto certo e razoavelmente suculenta. Claro que se pode sempre dizer que um dos problemas do Guilty é que a carne de melhor qualidade não está a ser servida nos pratos, mas isso é outra história. A combinação entre o queijo cheddar e a cebola confitada não é a coisa mais original do mundo, mas, mesmo assim, é vencedora. O bacon estava crocante, saboroso e não pingava gordura.
Já o hambúrguer Italiano é uma porcaria. É perfeitamente normal – e até saudável – que um hambúrguer com cogumelos porcini e maionese de trufas saiba um pouco a terra. Faz sentido. O que não faz sentido algum é que com uma combinação de ingredientes que, à partida, parece absolutamente fabulosa, o resultado final seja algo cuja primeira dentada nos dá a sensação de estarmos a mastigar uma peça de roupa interior que foi usada durante três dias consecutivos e depois enterrada no meio de um bosque durante duas semanas. A rúcula, pensaram eles, é suficiente para disfarçar o mofo geral a que aquilo sabe, mas o efeito é mais ou menos o mesmo que borrifar com perfume uma pessoa que não toma banho há uma semana. Não vai melhorar nada.

Há algo curioso a propósito dos restaurantes do Olivier e que os torna preocupantemente assimiláveis àqueles participantes de reality shows que, apesar de odiosos, têm lugar de destaque na imprensa especializada. Cada vez que um restaurante do Olivier é inaugurado, tanto os jornais como a televisão dão destaque ao evento, como se o anterior empreendimento tivesse sido um sucesso que, na prática, não foi. E apesar de já contar com um número significativo de más críticas – e alguma chacota –, o homem sobrevive enquanto empresário de restaurantes. Esta capacidade de resistência não deve ser menosprezada mas, ao mesmo tempo, deve servir para que quem escreve sobre restaurantes em Portugal – e quem a eles vai – consiga perceber que uma parte significativa do universo gastronómico está entregue a pessoas que são, em termos técnicos e de vestuário, um empresário português, mas que não percebem absolutamente nada de comida. Não quero afirmar taxativamente que este é o caso do Olivier, apesar de os indícios estarem lá para quem os quiser ver, mas há algo nítido quando se entra num dos seus restaurantes e o Guilty não é excepção: não foi a paixão pelos ingredientes e pela comida que serviu de base àquela ideia. E por isso mesmo o pai (o Michel da Costa) teve uma estrela Michelin e o filho apenas tem um pneu.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Masoquismo gastronómico

Para a Mariana e para o Martim, com quem provei o meu primeiro cazu marzu.


If I could bleed, or sleep!
If my mouth could marry a hurt like that!
Sylvia Plath

 
Nunca fui apenas uma pessoa que se alimenta, sempre fui um gajo que come. A minha mãe diz que não, que quando eu era bebé não comia nada e que tudo me distraía da sopa de legumes. O problema chegou a tais dimensões que o lugar preferido dos meus pais para me obrigarem a comer era uma sala onde me punham virado para uma parede completamente branca e sem qualquer elemento decorativo. Não posso asseverar a veracidade desta história, porque, como tenho vindo a descobrir, os meus pais são pessoas com sentimentos religiosos e por certo preferem imaginar que houve uma época da minha vida em que o meu estado natural não se padronizava por impulsos de gula.
Desde que tenho consciência da minha presença no mundo e capacidade de arquivar a esse propósito memórias concretas, sempre gostei de comer de uma forma que ora encantava ora afligia as pessoas. Acontece que, no início, eu era um puto mimado para comida, no fundo, aquilo a que se pode chamar um fascista gastronómico. Gostava da comida da minha mãe e da Joana – que tomava conta de mim – e, também, de todos os sítios que cozinhavam as mesmas coisas que a minha mãe e a Joana e que o faziam mais ou menos como elas. Isto é normal numa criança, acho, mas eu era, ainda assim, um bocado para o estranho, porque aquilo de que gostava e que me cozinhavam era soufflé de peixe, mão de vaca com grão, ensopado de borrego, sopa de tomate com peixe frito, empadas de caça, e por aí.
Mas não gostava de muito mais coisas, nomeadamente não suportava refeições mais simples tipo bife com batatas fritas ou hambúrgueres com ovo, aquelas coisas de que a maioria das crianças gosta. Eu era, até certo ponto, descrito pelos meus pais como um puto complicado de pôr a comer, exactamente o contrário do meu irmão que sempre gostou de provar de tudo.
O que mudou tudo isto teve menos que ver com comida e mais com a concepção que tinha sobre a minha posição no mundo. Há miúdos que convivem pacificamente com aquela hemisferização do universo entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças. Eu nunca percebi as coisas assim e, principalmente, nunca percebi muito bem aquela falácia argumentativa que é o assunto só de adultos. É provável que os amigos agrobetos dos meus pais não primassem pela perspicácia e inteligência, mas a verdade é que nunca me senti particularmente diferente daquelas pessoas que tinham mais um metro que eu de altura. Compreendia-lhes a conversa, percebia-lhes, em certa medida, a angústia que por vezes aplicavam aos diálogos. Sempre me pareceu que a única diferença entre mim e eles era que eles não tinham um game boy e que eu era mais baixinho, coisa que não me permitia chegar com os pés aos pedais do jipe que todos tinham. Os meus pais, felizmente, não tinham um jipe, mas nem por isso me pareciam mais adultos que os amigos deles.
Todos os malditos fins de semana lá me deixavam em casa, com a Joana, e iam jantar fora com os amigos, numa terra chamada Estremoz, a cerca de trinta quilómetros de Elvas. Não era o comer em casa que me chateava, porque eu preferia de longe a cozinha da Joana a qualquer coisa que um restaurante me pudesse oferecer, mas aquela ostracização social e etária era inaceitável. Não conseguia compreender o que me era interdito naquele misto de latifundiários, empregados de bancos e funcionários públicos que se juntavam a uma mesa num sábado e por volta das oito e meia da noite.
Os meus pais, habilidosos e sabedores da impaciência que isto me causava, mantinham-me o game boy apinhado de jogos, mas eu sempre fui uma pessoa de soluções extremas e radicais para os meus problemas e aproveitei um natal para exigir como prenda a autorização para participar nos tais jantares de adultos. Até escrevi uma carta ao Pai Natal. Tamanha obstinação com um objectivo, disposta a abdicar de presentes e a passar pelo ridículo de parecer acreditar ainda no Pai Natal, sensibilizou os meus pais. Mas, ao mesmo tempo, também os assustou e os tornou ainda mais desconfiados do espécime que por ali andava a crescer. Sei isto porque, apesar de terem acedido ao meu pedido, não deixaram de o fazer sem me prepararem uma armadilha.
Chegado o sábado prometido, lá me arrumaram entre os adultos numa mesa do restaurante Julião (acho que era assim que se chamava). Lembro-me que ficava mesmo em frente a uma sociedade recreativa. Devia ter desconfiado das intenções dos meus pais, porque sempre que me permitiam pequenas incursões no mundo dos adultos isso era normalmente precedido de inúmeras ameaças de porrada caso transgredisse a mais pequenina regra, o que desta vez não estava de todo a acontecer. Claro que a armadilha não demorou a chegar. Ao fim de dois minutos no restaurante, quando ainda nem sequer tinha podido pedir o meu Jói de laranja, puseram-me no prato uma coisa com ar de panado de frango, mas que rapidamente percebi estar longe de ser qualquer coisa que, em tempos, tivesse ostentado uma penugem. “São perninhas de rã”, foi como o meu pai me apresentou aquilo, com um sorriso tão aberto que mais parecia que lhe doíam os dentes. Antes fosse isso, pensei eu. Sabia que o melhor era não esboçar qualquer reacção para lá de uma simples pergunta, “De rã?”. A confirmação unânime pelos demais adultos dissipou a esperança de que se tratasse só de uma brincadeira.
Percebi também que aquilo, afinal, era uma grande conspiração contra mim, que a armadilha tinha sido combinada de antemão com os amigos dos meus pais e que, agora, toda a gente estava a olhar para o meu rosto de pânico. Observei por um instante aquelas pernas titubeantes, segurando-as com a ponta dos dedos e fingindo que aqueles pares de olhos cretinos fixados em mim me eram completamente alheios. Não sabia sequer o que é que ali era para se comer, o que era carne ou o que era osso e cartilagem, mas nem me atrevi a perguntar. Eu nem sabia sequer que se comiam rãs. Interpretei esse conhecimento como um código de maturidade, uma demonstração ritual de que estava preparado para jantar entre adultos. Mordi a parte que me pareceu ser comestível e preparei-me mentalmente para cuspir comida e de seguida levar com uma valente chapada nas trombas.
Pode ter sido um milagre. Talvez alguma divindade gastronómica aborrecida com a iniquidade dos meus pais tenha alterado o sabor das pernas de rã no último instante, substituindo-o por algo que me agradava. Ou talvez as perninhas de rã sejam uma coisa absolutamente compatível com as singularidades do meu paladar. O que eu sei foi que me soube bem, que me excitou, que me provocou uma sensação de prazer inédita. Ainda mal tinha acabado de mastigar o primeiro naco e já atava a abocanhar outra vez o bicho. O horror no rosto dos meus pais atestava perfeitamente a consciência do insucesso, quer porque se aperceberam de que eu era, mesmo, um caso perdido de profanação, quer porque pela primeira vez tinham sido ostensiva e publicamente derrotados por uma criança que se preocupava com pouco mais coisas que as horas a que o He-Man passava na televisão.
Depois deste jantar, depois das perninhas de rã, a minha atitude para com a comida mudou. Nunca mais, em toda a minha vida, voltei a dizer que não a um prato, a não aceitar provar algo desconhecido. Miudezas de animais? Venham. Comida gelatinosa ou viscosa? Siga. Pimentos ameaçadoramente picantes? Claro que sim. Cada ingrediente desconhecido ou de aspecto pouco apelativo recorda-me o desafio colocado pelos meus pais e a minha decisão é sempre a mesma: enfrentá-lo e esperar que tudo corra bem.
E muitas vezes não corre. Um pedaço de casu marzu, um queijo italiano (pecorino, se não me falha a memória) em decomposição e carregado de larvas, deixou-me na boca um sabor que imagino ser o de um cadáver a apodrecer, o qual sobreviveu a muitas mais lavagens de dentes do que seria recomendável para a minha vida sexual nessas semanas em Itália. Uma vez comi uma espécie de feto de alienígena, de aspecto fálico-murcho, a que dão o nome de ameijoa-gigante e posso garantir-vos que, para além de uma horrível textura fibrosa, não há na terra gengibre, wasabi e soja que cheguem para disfarçar o sabor daquilo: o equivalente, em termos de paladar, a afogarmo-nos numa poça de mijo.

Complexo de Édipo alimentar


Para os meus pais, que nunca censuram nada daquilo que eu quis fazer passar por criatividade


My heart’s aflutter!
I am standing in the bath tub
Crying. Mother, mother
Who am I?
Frank O’Hara – Mayakovsky

 

I

(a culpa é da minha mãe, a sério)

Os textos sobre comida que mais me interessam só lateralmente – ou como ponto de partida – são sobre comida. Não me parece que seja muito difícil perceber que poucas são as coisas que se podem dizer sobre comida se nos restringimos só a isso. E mesmo essas poucas coisas podem ser resumidas num dos antagonismos mais eficientes da expressividade humana: “sabe bem ou sabe mal”, ou, melhor ainda, “yummi/blerghh”.
É por isso que nos melhores textos de gastronomia a comida aparece apenas como rampa de lançamento ou como fio condutor de uma história maior. A comida é apenas uma aproximação e, depois, a partir dela podemos chegar ao que quisermos, seja política, história e, até mesmo, a um possível sentido para a existência humana. É neste recreio que a gastronomia se constitui como um ramo da filosofia e digo isto sem qualquer intenção hiperbólica ou humorística. A isto podemos chamar a experiência macrocósmica da gastronomia.
Mas, depois, há uma versão microcósmica, que também diz que a comida não se resume ao império do sabor, mas agora numa versão pessoal. Neste sentido, a comida interessa fundamentalmente enquanto agitador da memória de cada um. O Tender at the Bone, da Ruth Reichl ou o Yes, Chef, do Marcus Samuelsson, são exemplos de excelentes memórias gastronómicas, se bem que neste campeonato o Blood, Bones & Butter da Gabrielle Hamilton não tem qualquer rival à vista.
Interessam-me as duas vertentes, até porque alimento – no pun intended (sempre quis escrever isto aqui no Mashnotes e até agora nunca tinha estado perto de funcionar) – a esperança de um dia conseguir escrever e publicar uma história política da humanidade contada de uma perspectiva hedonista e centrada na evolução dos processos gastronómicos. O mais provável é nunca o conseguir, mas enquanto a decepção definitiva não me atinge em cheio no parapeito das expectativas, vou-me contentando com algumas ideias sobre a minha memória gastronómica.
Dei-me conta, ao escrever o meu último texto aqui, que grande parte das minhas obsessões/manias com comida foram causadas directa ou indirectamente pela minha mãe. Não quero com isto desculpabilizar o meu hedonismo, nem começar a preparar a minha defesa para, na eventualidade dos católicos terem razão e a gula afinal ser mesmo um pecado mortal, me poder safar da danação no Inferno. Na verdade, se há coisa que a minha mãe tenta todos os dias é fazer de mim uma boa pessoa – apesar de o sucesso do empreendimento ser claramente discutível –, e, por isso, domesticar ou contrabalançar as minhas obsessões faz parte desta missão que ela decidiu tomar em mãos.
O que acontece é que os meus pais são pessoas com ideias muito peculiares relativamente à educação de uma criança. Começo por um exemplo que até nem tem nada a ver com comida. Ao que parece foi difícil fazer-me largar a chupeta. Durante o dia deixei de usar a chucha muito cedo, mas para dormir era uma espécie de obsessão. Um dia, tinha eu uns quatro ou cinco anos, os meus pais apareceram-me à frente com um Decreto assinado pelo Presidente da República – na altura o Mário Soares – que supostamente falava sobre mim. Como ainda não sabia ler perguntei o que dizia e eles responderam que ao que parecia eu era a única criança nascida em 1985 que ainda usava chupeta. De imediato, fui ao meu quarto e, de cima da mesa-de-cabeceira, apanhei a chupeta e fui deitá-la no lixo.
Os episódios que se seguem são isto, dois exemplos de como a singular aproximação que a minha mãe teve à educação de uma criança condicionou em muito aquilo que eu sou enquanto pessoa que come. 

 

II

(Um Oriente ao oriente do Oriente)

Nasci numa casa hipertensa. Desde bem pequeno que me lembro de ver gente lá em casa de roda daqueles aparelhos de medir a tensão. A minha mãe tinha mesmo problemas sérios com a tensão arterial, o meu pai tinha-os por solidariedade histérica, como é costume nele, porque de resto o homem até tem uma saúde de fazer inveja. Mas fosse como fosse, a utilização de sal e especiarias lá em casa estava bastante restringida. O mesmo acontecia como o meu conhecimento e acesso a restaurantes de comida muito condimentada, ou seja, mexicanos, indianos, paquistaneses, vietnamitas, tailandeses, malaios entre outros. Não que, na verdade, algum deles existisse em Elvas, mas isso não interessa. Dizia a minha mãe, e eu acreditava, que as cozinhas que usam muito picante o fazem para esconder a má qualidade dos alimentos. Eu não tinha outro remédio que acreditar. Só muito mais tarde, quando vim estudar para Lisboa, a meio de Setembro de 2003, é que entrei em contacto com estas formas condimentadas de cozinhar e descobri a patranha monumental que os meus pais me tinham pregado.
Outra coisa que eu não conheci até vir estudar para Lisboa foram restaurantes clandestinos. Em Elvas nunca tinha ido a um restaurante clandestino. Em primeiro lugar, porque a minha mãe andava por lá, em segundo lugar porque não havia restaurantes clandestinos, pelo menos que eu interpretasse ou conhecesse como tal. O que havia – e não em pequeno número – era estabelecimentos cujo desrespeito propositado e metódico pelas regras mais básicas de higiene competia diligentemente com qualquer restaurante clandestino de Lisboa. É preciso dizer que, neste espaço, estou a puxar pelos galões de uma memória de infância e adolescência anterior à ASAE e à correspondente hospitalização da gastronomia portuguesa mais hardcore.
Quando cheguei a Lisboa, já em pleno período ASAE, a ideia de clandestinidade na restauração exerceu logo um certo fascínio sobre mim, muito graças ao total desconhecimento que eu tinha. O meu affair com a comida sempre teve esta dimensão em que a presença do mistério funciona como ignição da lascívia gustativa. Primeiro o porco – que durante anos me asseguraram ser um animal impuro –, depois o sushi, a comida crua, a cozinha molecular, a medula óssea, as ostras, tudo isto faz parte do mesmo impulso que procura a revelação no desconhecido. O amadurecimento da minha personalidade gastronómica fez-se assim, a espreitar para dentro da toca do coelho para saber quão fundo é o buraco.
Guardo uma memória de ter ouvido falar pela primeira vez de um restaurante clandestino em Lisboa num concerto de Chimaira e Ill Niño, nos tempos em que ia ao Paradise Garage e achava que os concertos de nu-metal até eram capazes de encarreirar a minha vida sexual. Não o fizeram, mas isso fica para outra história. Estava na Faculdade há um par de semanas e essa novidade apanhou-me, felizmente, num dos poucos momentos de sobriedade e frescura física que essas semanas me proporcionaram. Alguns dias depois fui estrear-me num desses clandestinos, um indiano numa zona que, na altura, eu definia como o eixo Pequim-Islamabad da linha verde do metro e que hoje em dia conheço como o paraíso do mercado gastronómico paralelo. Devo confessar que esta primeira experiência não foi propriamente a revolução que estava à espera. O conceito de clandestinidade ajudava muito mais o restaurante do que o restaurante ajudava a construir uma ideia sólida e adequada do que há de bom na clandestinidade. Afinal, aquilo que me tinha sido descrito como um lugar à margem de todo o universo jurídico que eu andava a aprender na Faculdade de Direito era, no fim de contas, uma transmutação étnica dos restaurantes mais tenebrosos de Elvas, como aqueles onde se costumavam desenrolar os jantares da minha turma da Escola Secundária D. Sancho II. Graças a esta primeira experiência falhada, demorei ainda uns tempos a compreender a verdadeira tipologia dos restaurantes clandestinos.
Vamos lá falar, então, sobre a definição de restaurante ilegal. A meu ver, trata-se de um conceito particularmente lato, mas que tem dois extremos bem definidos. Num, o restaurante que é ilegal porque não existe juridicamente como um restaurante, mas que, de resto, até cumpre com alguma decência as regras básicas que permitem a qualquer ser humano saber que está na presença de um lugar onde é perfeitamente seguro comer. Noutro, aqueles lugares que existem totalmente à margem de qualquer lei, incluindo, em alguns casos, das leis da física, onde a única semelhança com um restaurante é o pagamento de uma determinada quantia em troca de alimentos previamente cozinhados ou até nem isso. Há um chinês para os lados da Mouraria onde o serviço das mesas é, ocasionalmente, desempenhado por crianças e onde é servido gatinho com molho de ostras. A verdade é que não sei se é gato, mas tenho a certeza absoluta de que aquela carne esponjosa não tem grandes hipóteses de ser vitela. Há – ou havia – uma cachupa ilegal numa daquelas travessas que corta a Rua da Rosa onde já vi uma pessoa ser esventrada. Quando contei esta história, horrorizado, a um assíduo do tasco ele disse que já tinha visto dois gajos serem esventrados. Ganhou-me.
Um restaurante clandestino que se preze obriga o cliente a uma expectativa inquietante, quer seja relativamente às hipóteses de sair dali com vida ou a salvo de uma intoxicação aguda, quer seja relativamente à natureza dos pratos que vão chegar à mesa. Poucas sensações se comparam ao prazer de comer um pedaço de carne de vaca, quando foi exactamente isso que se pediu, mas se estava com a ideia de que o que ia acabar por chegar a mesa seria antes frango, gambas ou, na pior das hipóteses, um gato vadio ou uma ratazana menos dotada nos esquemas da sobrevivência. As pessoas não têm noção disto, mas esse mito de que há restaurantes que servem ratazanas em vez de vaca ou de frango é uma coisa que dificilmente acontecerá na realidade. As ratazanas que habitam nas imediações de restaurantes são bichinhos com capacidades de sobrevivência absolutamente fenomenais. Digo isto por experiência própria, se bem que este não é de todo o sítio para o explicar. Ou as ratazanas que servem no restaurante não foram capturadas ali perto e vêem de uma espécie de quinta onde criam ratazanas para abate e, neste caso, não me importo nada de comer o bicho, desde que devidamente cozinhado, ou então não servem ratazana, porque capturar uma ratazana de restaurante é muito difícil e quem ir pelo atalho de a servir em vez de outra carne mais nobre, certamente não vai gastar o tempo e a energia necessários para capturar uma. Isto é, no fundo, uma teoria que eu tenho e é bem capaz de estar errada, mas gostei deste parágrafo e não me apeteceu cortá-lo.
Ainda sobre a história da comunicação com o pessoal do restaurante há, por exemplo, um paquistanês clandestino no qual, tanto quanto sei, nunca comi um prato que tivesse exactamente o que pedi, ao ponto de ter começado a pedir pura e simplesmente para me trazerem comida a partir da terceira vez que lá fui. Posso, contudo, garantir que aquilo que se perdeu na comunicação entre mim e o Kamran nunca me prejudicou, nem me fez adoecer.


III

(Frustrated fireworks inside your head)

A minha aproximação à cozinha tem a mesma origem que o meu fascínio enquanto criança pelos tubos de ensaio cheios de líquidos coloridos e pelas pipetas. Sem perceber muito bem o que é que aquilo era, o que me impressionava e me atraía eram as cores vibrantes dentro de objectos transparentes com formas geométricas espantosas. Num aniversário um daqueles tios malucos e insensatos ofereceu-me um kit de química para crianças cujo anúncio passava na televisão e de que eu andava a falar há meses. Era, realmente, para pequenotes, mas de idade superior a dez anos e eu na altura tinhas uns seis ou sete, suponho, o que significa que para a minha mãe eu deveria ter uns três ou quatros.
Nunca cheguei a brincar com esse estojo porque entretanto esqueci-me da sua existência, provavelmente com a ajuda da eficaz psicologia materna, e quando finalmente fiz 10 anos a minha cena era outra, talvez uma Sega Saturn ou coisa parecida.
Isto significa – e prova – que a minha curiosidade não era verdadeiramente científica, era pura e simplesmente visual, e por isso não há que reprovar os meus pais pela repressão do meu instinto científico, pois nunca o devo ter tido. Não estou certo disto, mas arrisco dizer que é bem provável que os meus pais não tenham nada a ver com o facto de Portugal ainda não ter ganho um Prémio Nobel da Química.
 Ainda hoje, quando oiço falar sobre a aproximação científica à cozinha e sobre como isso ajuda a perceber o que verdadeiramente acontece quando se põe um naco de carne ao lume e como isso pode ser útil para melhorar e rentabilizar ainda mais o sabor, aquilo que me passa mais vezes pela cabeça é isto: “pá… eu gosto é de ver coisas a borbulhar de forma esquisita e de utilizar tubos de ensaio, pinças e conta-gotas”.
O tal estojo de química permaneceu na minha memória, como um hóspede discreto, sem que o meu pensamento em momento algum tivesse por costume cruzar-se com ele. Há uns dias, enquanto estava a preparar uma solução de alginato para fazer um caviar de sumo de maçã, tropecei finalmente com a história do estojo lá num dos edifícios já meio abandonados da minha memória. Automaticamente consegui explicar-me porque é que passo grande parte do meu tempo livre a fazer experiências com comida. Eu gosto imenso de comer, mas gosto muito mais de comer coisas cozinhadas por outros do que por mim. Aquilo que me atrai para a cozinha é, mais uma vez, o mesmo fascínio infantil que tinha pelos tubos de ensaio e pelas pipetas. Isto é possível porque sou um privilegiado. Para mim a cozinha não é um tentáculo do trabalho, não é uma obrigação. A minha mãe é uma cozinheira talentosa, mas nunca gostou muito de estar numa cozinha porque, imagino eu, deveria vê-la como um prolongamento do trabalho, como uma tarefa. Chegava a casa tarde e tinha a obrigação de alimentar um paspalho que tinha passado a duas últimas horas a ver desenhos-animados e a jogar Nintendo.
Comigo isto não acontece, porque não tenho a obrigação de cozinhar para ninguém, a não ser para me alimentar a mim próprio. Assim, a cozinha nunca é uma tarefa, é antes um espaço sem censura onde posso assumir qualquer risco porque, em última análise, sou apenas eu quem sofre com isso. Qualquer risco de envenenamento, queimadura de frio, indigestão, estorricamento de sobrancelhas ou, simplesmente, de enojamento apenas recai sobre mim. Isto confere-me uma segurança que me permite dar um passo maior que a minha perna e experimentar técnicas culinárias alienígenas sem nunca ter cozinhado grande parte das refeições mais básicas. Neste campo, sou como alguém que tenta aprender uma língua exótica sem começar pelo abecedário e pelo bom dia e boa tarde. E, se querem saber, é a coisa mais divertida do mundo.

Guia prático com alguns conselhos sobre como se comportar num restaurante


I'm gonna tell you something you don't want to hear
I'm gonna show you where it's dark, but have no fear
Kavinsky

 
Li há uns tempos um texto do Mikel López Iturriaga publicado no El Comidista – do El País – que no fundo copia uma ideia do Adam Roberts no Huffington Post sobre coisas que não se pode/deve fazer num restaurante, o qual, por sua vez, copia umas quantas ideias do Anthony Bourdain no Kitchen Confidential, que o mais provável é ter copiado também a ideia de qualquer outra pessoa. Nada contra, até porque aquilo que andamos por aí a fazer é, no fundo, isso mesmo: copiar uns pelos outros.
Tanto as recomendações do Mikel Iturriaga como do Adam Roberts fazem sentido. Por exemplo, ambos concordam que não se deve ser esquisito com os ingredientes e pedir se este ou aquele elemento do prato pode ser retirado. Contudo, esta ideia aparentemente intuitiva e inquestionável deve ser matizada. A sua aceitação implica que o cliente esteja a assumir que o equilíbrio e o efeito de um determinado prato foi pensado ao pormenor pelo chef, daí que a única conclusão passível de ser retirada é que a ausência de qualquer elemento pode significar a derrocada do prato como ele foi pensado e como ele é pretendido pelo seu autor.
Mesmo circunscrevendo-nos ao universo diminuto dos restaurantes mais finórios, isto é uma lógica muito arriscada. Não é tão incomum assim deparar-me, num restaurante aqui de Lisboa, com umas linhas de vinagre balsâmico – ou de uma redução qualquer – que não faziam falta nenhuma, com uma crosta de amêndoas absolutamente despropositada ou com uma cama de grelos ou uma cebola caramelizada por cima que não são outra coisa que uma grande crueldade para com as belas postas de peixe ou nacos de carne que acomodam.
Outra coisa que normalmente aparece a estragar um prato são aquelas espumas ou emulsões. Sou totalmente a favor dessas inovações da cozinha pós-moderna e, à escala do microcosmos da minha cozinha de casa, pratico-a em abundância. Mas a utilização de uma espuma deve obedecer a dois critérios alternativos: ou pretende ser um complemento mais leve e fresco que os molhos demasiado pesados ou ricos, feitos a partir de uma mother sauce; ou é por si só o prato e, aí, tem que surpreender pelo contraste entre a textura quase etérea e a intensidade do sabor, como acontecia com a clássica espuma de cenoura do El Bulli. No Pedro e o Lobo – um dos restaurantes mais fanfarrões de Lisboa – serviram-me uma vez um leite-creme com uma espuma de qualquer coisa, à qual chamo espuma de qualquer coisa porque obviamente sabia tanto a essa coisa que eu nem me consigo lembrar do que era. No Manifesto, onde ao contrário do Pedro e o Lobo sabiam inventar sem comprometer a integridade dos produtos, serviam um arroz de pato delicioso, só que complementado com espuma de parmesão que sabia a água estagnada. Também me intriga particularmente a utilização anárquica das ervas aromáticas polvilhadas por cima dos coitados dos pratos, mas vamos regressar ao argumento.
Há sempre um risco inerente a assumir-se que alguém sabe mais sobre uma coisa que nós e que é o de afinal essa pessoa não saber mesmo mais que nós. Não devemos assumir que, em princípio, vamos saber mais sobre cozinha do que uma pessoa que fez disso profissão, mas também não vamos assumir que isso nunca há-de acontecer. Há casos em que a utilização deste ou daquele ingrediente cheira logo distúrbio psicótico do cozinheiro. Comam naquele restaurante do Olivier, no Tivoli, e vão ver.
A recomendação aqui é, como em quase tudo na comida, seguir a intuição. Deve partir-se de uma posição de tolerância e de confiança para com o trabalho do cozinheiro. Esta é a intuição mas imediata, acreditar que aquela pessoa pensou devidamente aquele prato e que aquela combinação de ingredientes ou resulta de uma interiorização dos processos milenares da cozinha ou resulta da um trabalho ponderado e testado de subversão desses processos. A verdade é que quando isto não acontece a nossa intuição vai, na maioria dos casos, alertar-nos para o embuste, a não ser que a pessoa tenha por costume armar-se em pato bravo de cardápio.   
Há um outro aspecto que os dois autores recomendam e que me parece ser uma das ideias mais importantes a reter: uma postura activa no restaurante. Isto tem vários corolários. Convém prestar alguma atenção às recomendações que nos são feitas mas, em última análise, o nosso apetite e a inclinação da nossa vontade é que deve prevalecer. Não quero com isto dizer que as recomendações dos empregados correspondem normalmente a armadilhas de preços, mas algumas vezes é mesmo isso que acontece. Também é importante não ter vergonha de perguntar o que leva cada prato, se isso não se encontra explícito na ementa. Há poucas coisas mais insensatas que pedir um prato com um ingrediente que se desconhece de todo.
Mas aquilo que importa mais, na defesa e manutenção de uma atitude activa e salutar, é dizer que não se gostou deste ou daquele prato ou deste ou daquele aspecto do serviço quando somos questionados sobre tal. É ridículo convencionarmos que o aplauso ou elogio são merecidos a partir do momento em que o nosso dinheiro é utilizado para pagar. Nunca o cliente deve ter vergonha de dizer que não gostou de um prato com medo de parecer ignorante. A posição de um cliente é a de alguém a quem é devido um serviço, não é o mesmo que ir a um museu. Apesar de alguns chefs pensarem que sim, que as pessoas têm que ir ao seu restaurante como quem vai ver uma obra de arte, cabe aos clientes reconduzi-lo à mais básica humildade: é comida, primeiro é suposto saber bem e depois logo vamos pensar se estava bonito ou não. 
Quero também acrescentar algumas recomendações da minha lavra da minha lavra. Já vou tendo amigos que, voluntariamente, se puseram a povoar a terra com bebés e, também, alguns amigos que, involuntariamente, fizeram o mesmo por estarem voluntariamente bêbados ou serem voluntariamente ignorantes. Alguns, inclusive, começaram a levar esses bebés aos jantares que combinam comigo. Sinto-me, por isso, na obrigação de escrever umas quantas linhas a aconselhar esses meus amigos.
Por favor, evitem levar crianças quando jantam fora. O único restaurante a que eu não me importo de ir e que está verdadeiramente preparado e, já agora, interessado em receber as crianças é a vossa própria casa. Quando eu era criança os meus pais, depois de muita insistência minha, acabaram por perder o bom senso e começaram a levar-me aos jantares de amigos. E eu, apesar de não me lembrar de tudo, acho que aproveitei essas oportunidades para entornar sumol em cima das mesas e das roupas, para pedir um prato e depois embirrar que afinal queria a comida que outra pessoa tinha pedido, para vomitar, para dar trambolhões e ser levado de urgência ao hospital porque bati com a mona num bloco de betão e depois de chorar me lembrei de dizer que estava sonolento.
Não pensem que sou egoísta, até porque isto é também uma tortura para as crianças. Não deixei de ser puto assim há tanto tempo que já não me consiga lembrar da tortura psicológica e física que às vezes representava uma ida a um restaurante todo pensado para gente adulta. Na maioria dos casos, as crianças sofrem mais nos restaurantes do que um adulto pode sofrer com a sua presença e quando isso não acontece pode ser um indício de que o vosso filho é um génio do mal.
Eu era, já em criança, um caso perdido. Apesar de todo o tormento físico que isso necessariamente representava, o prazer da comida e, claro, a noção perfeita de que estou a chatear alguém perto de mim, cedo se começaram a sobrepor. São, até hoje, os dois elementos que mais profundamente definem o meu carácter. Não queiram isto para os vossos filhos, a maioria não consegue chegar aqui sem uma úlcera e 10 quilos de peso em excesso. E se eu já aqui estou sem ter a saúde particularmente danificada, apesar de tudo, arrisco-me a dizer que é porque cresci para o lado do mal e, por dentro, a minha alma, ou lá o raio que seja, é balofa e psicótica.

Food always shines on TV


De toutes les passions, la seule vraiment respectable me paraît être la gourmandise.

Guy de Maupassant

 
Talvez tenha sido por puritanismo ou, simplesmente, por atraso civilizacional, mas o certo é que a comida até há uns anos raramente aparecia na programação dos canais de televisão cá do burgo. Nas livrarias acontecia o mesmo. Sempre gostei de comprar livros sobre comida, fossem ensaios, manuais ou memórias de cozinheiros. Só que há uns anos atrás, quando comecei a compor a minha biblioteca gastronómica, essas secções das livrarias portuguesas eram diminutas ou, na maioria dos casos, inexistentes. Os poucos livros que se conseguiam encontrar ou eram pesados volumes preparados para os armários de cozinha ou então livros dos poucos cozinheiros que iam aparecendo na televisão, com mais fotografias e introspecção pateta do que receitas úteis. Era um universo sexista e nitidamente vocacionado para uma concepção conservadora da cozinha.
Contra isto que acabei de dizer, podem perguntar-me “Então e o Jamie Oliver e a Nigella Lawson? Esses já dão há uns quantos anos na televisão.” Claro que dão, desde quando é que aquilo são programas sobre comida? Os do Jamie Oliver são, como se sabe, documentários sobre os efeitos que o consumo prolongado de cocaína pode ter numa pessoa e os da Nigella são sobre uma senhora a sujar-se em sítios pornopotentes do corpo e, depois, a limpar as nódoas de forma malandra. Assunto encerrado.
Mas vamos falar de coisas sérias. A comida, enquanto consumo, tem duas funções: a nutrição e o prazer. À primeira dessas dimensões chamamos alimentação, à segunda gastronomia. A alimentação, ao que parece, esteve sempre na moda. A gastronomia é diferente, até porque é bem mais que ter prazer com a comida. A gastronomia é o privilégio de não ter que pensar na comida enquanto alimentação. E isso até há bem pouco tempo era um luxo que só estava ao acesso das elites. Mas que tem isto a ver com um texto que deve ser sobre programas de comida na televisão?
A revolução gastronómica, que permitiu a democratização do puro prazer com a comida, teve como grande motor o advento dos programas de cozinha na televisão, mais ou menos após a Segunda Grande Guerra. Como nunca antes, os universos paralelos da cozinha dos grandes restaurantes e da cozinha de casa iniciaram o seu diálogo. E ninguém melhor deu veículo a este diálogo do que as primeiras embaixadoras da grande cozinha francesa em terras anglófonas, a Julia Child e a Fanny Cradock. Estas duas grandes mulheres inauguraram o filão de programas sobre comida que hoje em dia povoam a televisão, até mesmo nos mais inusitados horários. Foi no desenvolvimento do seu legado que a comida começou a abandonar o seu âmbito funcionalista – e o seu horário pré-almoço – para se entregar ao simples prazer – e ao horário hedonista por excelência, o pós-jantar.
Não deixa de ser verdade que em grande parte destes programas gastronómicos que por aí andam a comida parece ser apenas um pretexto, como acontece nos programas do Gordon Ramsay, que está para a irreverência na cozinha como a Avril Lavigne está para o punk. Pode parecer disparatado o que vou dizer mas, tirando os programas de culinária e receitas, o No Reservations do Anthony Bourdain é o único programa a dar na televisão portuguesa que é absoluta e inteiramente dedicado à comida. Porque a comida, por mais estranho que isto pareça, não é trono indisputado das papilas gustativas, do estreito espaço que se forma entre o doce e o salgado, entre o que sabe bem e o que sabe mal. Ela importa também no acto de partilha, no seu efeito de memória, na compreensão da história que precede um prato e, neste apartado, a narração do Bourdain é campeonato de um só homem, apesar de haver por aí umas imitações mal-amanhadas como o Andrew Zimmern, no Bizzare Foods, e o Adam Richman, no intragável Man vs. Food, um programa tão interessante como levar pontapés no focinho.
Não me importa nada que o Bourdain seja um cozinheiro medíocre e que isso seja constantemente exposto nos programas em que ele tenta produzir alguma coisa de mastigável. Basta vê-lo a tremer ao pé do Éric Ripert num No Reservations passado na Brasserie Les Halles ou a ser incapaz de montar um prato no El Bulli que miúdos com vinte anos e escassos meses de experiência não têm qualquer dificuldade em completar. Como disse, isso não importa. O papel do Bourdain no universo gastronómico é o único digno de competir com o Olimpo dos chefs: Marie-Antoine Carême, Auguste Escoffier, Jöel Robuchon e Ferran Adrià.
De entre os inúmeros tipos de programas de comida – e há-os bem esquisitos –, vou falar agora sobre os concursos de cozinha. Podia perder-me aqui em subcategorias, mas neste caso elas são, essencialmente, duas: os concursos de amadores e os concursos de profissionais. Dos que passam na nossa televisão, o melhor concurso de amadores é o Masterchef Austrália, claramente superior à versão apalhaçada (Masterchef US) e à versão lobotomizada (Masterchef Portugal) e o melhor de profissionais é o Top Chef, que infelizmente já não dá em nenhum canal, acho eu. Nesta categoria, também gosto muito do Iron Chef, que às vezes é absolutamente brilhante, apesar de toda aquela pose bushido-parva.
Se tiver de escolher entre os concursos profissionais e os amadores, claramente prefiro os primeiros. Os programas de amadores, mesmo quando são tão bons quanto o Masterchef Austrália, incluem sempre uma dose de vida privada dos concorrentes que não interessa para nada. De vez em quando lá aparecem os familiares aos berros ou imagens dos concorrentes a chorar porque uma receita de sopa lhes recorda a comidinha da avó que morreu há uns meses – cambada de pussies. Também não quero que me interpretem mal, o drama nestes concursos é sempre bom, mas só quando envolve tachos a voar e concorrentes maquiavélicos armados em filhos-da-puta uns com os outros, o que, mesmo podendo parecer exagerado, corresponde quase fielmente ao ambiente tenso e caótico de uma cozinha profissional. O drama restante é dispensável e está mais próximo de ver fotos de gatinhos do que de cozinhar à séria. Trabalhar numa cozinha é um estágio intensivo para uma eternidade de danação no inferno. Fornos, bicos de fogões, água quente a correr, luzes artificiais ligadas o dia todo, espaços exíguos, cheiro de dezenas de ingredientes diferentes, cheiro a homo faber, barulhos diversos, ordens e pedidos aos berros, “Dois minutos para o hambúrguer”, “Ou me trazes as chalotas ou levas com panela nos cornos”, “Controla a porra do tutano”, “Um tártaro, dois atuns, um deles sem espargos, três pregos, um meio-termo com alho, outro bem passado com alho e um médio-mal sem alho e com queijo, duas sopas de tomate, uma com mascarpone e outra sem”. Antes de ter experimentado o que é trabalhar numa cozinha de restaurante, a minha ideia sobre como estas coisas funcionavam estava colada ao imaginário do Anthony Bourdain. Pelo menos nas cozinhas em que trabalhei, a coisa não se aproxima assim tanto da antecâmara do apocalipse alimentada a testosterona, manteiga clarificada e ervas aromáticas que o Bourdain descreve, mas também não é um lugar para meninos. Mais de metade dos meus colegas de profissão, gente que consegue vergar o mundo e que já aprendeu tudo o que há para saber acerca do cinismo, não seria capaz de aguentar o ritmo de uma noite numa cozinha atarefada.
Agrada-me esta dimensão bélica do trabalho numa cozinha. E nisto os concursos de profissionais são tão melhores. Claro que, mesmo neste tipo, há programas deploráveis. O Hell’s Kitchen não é sequer um concurso de cozinha, quanto mais um concurso de profissionais. Este tipo de programas centra-se todo nas estupidezes que os concorrentes fazem a cozinhar, isto é, na palhaçada. Dois terços dos erros cometidos não são sequer dignos de um amador e o Gordon Ramsey há muito que deixou de se levar a sério. Aconteceu-lhe, numa versão pior e mais gore, o mesmo que ao mestre, o Marco Pierre White, que em tempos foi a pessoa mais interessante do mundo da cozinha e hoje em dia faz publicidade aos caldos Knorr. Com o Masterchef US – no qual somam ao Ramsey um carequinha que diz que percebe muito de restauração – passa-se o mesmo, pelo menos nos primeiros episódios. O que está ali a ser explorado não é a comida, nem a paixão pela comida, mas antes a farsa que resulta da junção de dois componentes que não foram feitos para estar lado a lado: concorrentes dementes e meia-dúzia de fogões a gás a funcionar.
Os concursos de profissionais são, também, mais interessantes pela dificuldade dos pratos e das técnicas exigidas aos concorrentes. Não quer dizer que nos concursos de amadores não haja desafios absurdamente complicados, principalmente para gente que é cozinheiro de trazer por casa. Mas basta comparar um episódio de início de temporada do Top Chef com qualquer desafio final do Masterchef para perceber que o nível de dificuldade não tem qualquer comparação. Também por isto a crueldade do júri é muito mais controlada nos programas como o Masterchef. É raro ver o júri a desancar um concorrente, principalmente no Masterchef Austrália, que até enjoa pela simpatia. No Top Chef não. No Top Chef está lá o Tom Colicchio, pleno de badassness, e de vez em quando o Anthony Bourdain, capaz de levar ao suicídio o mais optimista dos cozinheiros. É por tudo isto que o Top Chef já deu a conhecer chefs interessantes, como o Richard Blais e o Marcel Vigneron e o Masterchef deu a conhecer aquele gajo... o coiso... o... ninguém.
Infelizmente, um dos melhores concursos de cozinha ainda não passou na televisão portuguesa, tanto quanto sei: o Masterchef – the Professionals. Há, também, outros programas de comida que, de forma imperdoável, ainda nem se lembrou de os pôr em Portugal, como Marcel’s Quantum Kitchen, se bem que a Sic Radical está a dar neste momento o Henton’s Feasts, que é do mesmo tipo, mas em melhor. Mas a grande falha da televisão portuguesa neste momento é não passar a segunda temporada do melhor programa sobre comida desde o No Reservations: o Mind of a Chef, narrado pelo Anthony Bourdain e que se centra, nesta segunda temporada, no Sean Brock, um dos chefs mais entusiasmantes dos últimos anos.