segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Complexo de Édipo alimentar


Para os meus pais, que nunca censuram nada daquilo que eu quis fazer passar por criatividade


My heart’s aflutter!
I am standing in the bath tub
Crying. Mother, mother
Who am I?
Frank O’Hara – Mayakovsky

 

I

(a culpa é da minha mãe, a sério)

Os textos sobre comida que mais me interessam só lateralmente – ou como ponto de partida – são sobre comida. Não me parece que seja muito difícil perceber que poucas são as coisas que se podem dizer sobre comida se nos restringimos só a isso. E mesmo essas poucas coisas podem ser resumidas num dos antagonismos mais eficientes da expressividade humana: “sabe bem ou sabe mal”, ou, melhor ainda, “yummi/blerghh”.
É por isso que nos melhores textos de gastronomia a comida aparece apenas como rampa de lançamento ou como fio condutor de uma história maior. A comida é apenas uma aproximação e, depois, a partir dela podemos chegar ao que quisermos, seja política, história e, até mesmo, a um possível sentido para a existência humana. É neste recreio que a gastronomia se constitui como um ramo da filosofia e digo isto sem qualquer intenção hiperbólica ou humorística. A isto podemos chamar a experiência macrocósmica da gastronomia.
Mas, depois, há uma versão microcósmica, que também diz que a comida não se resume ao império do sabor, mas agora numa versão pessoal. Neste sentido, a comida interessa fundamentalmente enquanto agitador da memória de cada um. O Tender at the Bone, da Ruth Reichl ou o Yes, Chef, do Marcus Samuelsson, são exemplos de excelentes memórias gastronómicas, se bem que neste campeonato o Blood, Bones & Butter da Gabrielle Hamilton não tem qualquer rival à vista.
Interessam-me as duas vertentes, até porque alimento – no pun intended (sempre quis escrever isto aqui no Mashnotes e até agora nunca tinha estado perto de funcionar) – a esperança de um dia conseguir escrever e publicar uma história política da humanidade contada de uma perspectiva hedonista e centrada na evolução dos processos gastronómicos. O mais provável é nunca o conseguir, mas enquanto a decepção definitiva não me atinge em cheio no parapeito das expectativas, vou-me contentando com algumas ideias sobre a minha memória gastronómica.
Dei-me conta, ao escrever o meu último texto aqui, que grande parte das minhas obsessões/manias com comida foram causadas directa ou indirectamente pela minha mãe. Não quero com isto desculpabilizar o meu hedonismo, nem começar a preparar a minha defesa para, na eventualidade dos católicos terem razão e a gula afinal ser mesmo um pecado mortal, me poder safar da danação no Inferno. Na verdade, se há coisa que a minha mãe tenta todos os dias é fazer de mim uma boa pessoa – apesar de o sucesso do empreendimento ser claramente discutível –, e, por isso, domesticar ou contrabalançar as minhas obsessões faz parte desta missão que ela decidiu tomar em mãos.
O que acontece é que os meus pais são pessoas com ideias muito peculiares relativamente à educação de uma criança. Começo por um exemplo que até nem tem nada a ver com comida. Ao que parece foi difícil fazer-me largar a chupeta. Durante o dia deixei de usar a chucha muito cedo, mas para dormir era uma espécie de obsessão. Um dia, tinha eu uns quatro ou cinco anos, os meus pais apareceram-me à frente com um Decreto assinado pelo Presidente da República – na altura o Mário Soares – que supostamente falava sobre mim. Como ainda não sabia ler perguntei o que dizia e eles responderam que ao que parecia eu era a única criança nascida em 1985 que ainda usava chupeta. De imediato, fui ao meu quarto e, de cima da mesa-de-cabeceira, apanhei a chupeta e fui deitá-la no lixo.
Os episódios que se seguem são isto, dois exemplos de como a singular aproximação que a minha mãe teve à educação de uma criança condicionou em muito aquilo que eu sou enquanto pessoa que come. 

 

II

(Um Oriente ao oriente do Oriente)

Nasci numa casa hipertensa. Desde bem pequeno que me lembro de ver gente lá em casa de roda daqueles aparelhos de medir a tensão. A minha mãe tinha mesmo problemas sérios com a tensão arterial, o meu pai tinha-os por solidariedade histérica, como é costume nele, porque de resto o homem até tem uma saúde de fazer inveja. Mas fosse como fosse, a utilização de sal e especiarias lá em casa estava bastante restringida. O mesmo acontecia como o meu conhecimento e acesso a restaurantes de comida muito condimentada, ou seja, mexicanos, indianos, paquistaneses, vietnamitas, tailandeses, malaios entre outros. Não que, na verdade, algum deles existisse em Elvas, mas isso não interessa. Dizia a minha mãe, e eu acreditava, que as cozinhas que usam muito picante o fazem para esconder a má qualidade dos alimentos. Eu não tinha outro remédio que acreditar. Só muito mais tarde, quando vim estudar para Lisboa, a meio de Setembro de 2003, é que entrei em contacto com estas formas condimentadas de cozinhar e descobri a patranha monumental que os meus pais me tinham pregado.
Outra coisa que eu não conheci até vir estudar para Lisboa foram restaurantes clandestinos. Em Elvas nunca tinha ido a um restaurante clandestino. Em primeiro lugar, porque a minha mãe andava por lá, em segundo lugar porque não havia restaurantes clandestinos, pelo menos que eu interpretasse ou conhecesse como tal. O que havia – e não em pequeno número – era estabelecimentos cujo desrespeito propositado e metódico pelas regras mais básicas de higiene competia diligentemente com qualquer restaurante clandestino de Lisboa. É preciso dizer que, neste espaço, estou a puxar pelos galões de uma memória de infância e adolescência anterior à ASAE e à correspondente hospitalização da gastronomia portuguesa mais hardcore.
Quando cheguei a Lisboa, já em pleno período ASAE, a ideia de clandestinidade na restauração exerceu logo um certo fascínio sobre mim, muito graças ao total desconhecimento que eu tinha. O meu affair com a comida sempre teve esta dimensão em que a presença do mistério funciona como ignição da lascívia gustativa. Primeiro o porco – que durante anos me asseguraram ser um animal impuro –, depois o sushi, a comida crua, a cozinha molecular, a medula óssea, as ostras, tudo isto faz parte do mesmo impulso que procura a revelação no desconhecido. O amadurecimento da minha personalidade gastronómica fez-se assim, a espreitar para dentro da toca do coelho para saber quão fundo é o buraco.
Guardo uma memória de ter ouvido falar pela primeira vez de um restaurante clandestino em Lisboa num concerto de Chimaira e Ill Niño, nos tempos em que ia ao Paradise Garage e achava que os concertos de nu-metal até eram capazes de encarreirar a minha vida sexual. Não o fizeram, mas isso fica para outra história. Estava na Faculdade há um par de semanas e essa novidade apanhou-me, felizmente, num dos poucos momentos de sobriedade e frescura física que essas semanas me proporcionaram. Alguns dias depois fui estrear-me num desses clandestinos, um indiano numa zona que, na altura, eu definia como o eixo Pequim-Islamabad da linha verde do metro e que hoje em dia conheço como o paraíso do mercado gastronómico paralelo. Devo confessar que esta primeira experiência não foi propriamente a revolução que estava à espera. O conceito de clandestinidade ajudava muito mais o restaurante do que o restaurante ajudava a construir uma ideia sólida e adequada do que há de bom na clandestinidade. Afinal, aquilo que me tinha sido descrito como um lugar à margem de todo o universo jurídico que eu andava a aprender na Faculdade de Direito era, no fim de contas, uma transmutação étnica dos restaurantes mais tenebrosos de Elvas, como aqueles onde se costumavam desenrolar os jantares da minha turma da Escola Secundária D. Sancho II. Graças a esta primeira experiência falhada, demorei ainda uns tempos a compreender a verdadeira tipologia dos restaurantes clandestinos.
Vamos lá falar, então, sobre a definição de restaurante ilegal. A meu ver, trata-se de um conceito particularmente lato, mas que tem dois extremos bem definidos. Num, o restaurante que é ilegal porque não existe juridicamente como um restaurante, mas que, de resto, até cumpre com alguma decência as regras básicas que permitem a qualquer ser humano saber que está na presença de um lugar onde é perfeitamente seguro comer. Noutro, aqueles lugares que existem totalmente à margem de qualquer lei, incluindo, em alguns casos, das leis da física, onde a única semelhança com um restaurante é o pagamento de uma determinada quantia em troca de alimentos previamente cozinhados ou até nem isso. Há um chinês para os lados da Mouraria onde o serviço das mesas é, ocasionalmente, desempenhado por crianças e onde é servido gatinho com molho de ostras. A verdade é que não sei se é gato, mas tenho a certeza absoluta de que aquela carne esponjosa não tem grandes hipóteses de ser vitela. Há – ou havia – uma cachupa ilegal numa daquelas travessas que corta a Rua da Rosa onde já vi uma pessoa ser esventrada. Quando contei esta história, horrorizado, a um assíduo do tasco ele disse que já tinha visto dois gajos serem esventrados. Ganhou-me.
Um restaurante clandestino que se preze obriga o cliente a uma expectativa inquietante, quer seja relativamente às hipóteses de sair dali com vida ou a salvo de uma intoxicação aguda, quer seja relativamente à natureza dos pratos que vão chegar à mesa. Poucas sensações se comparam ao prazer de comer um pedaço de carne de vaca, quando foi exactamente isso que se pediu, mas se estava com a ideia de que o que ia acabar por chegar a mesa seria antes frango, gambas ou, na pior das hipóteses, um gato vadio ou uma ratazana menos dotada nos esquemas da sobrevivência. As pessoas não têm noção disto, mas esse mito de que há restaurantes que servem ratazanas em vez de vaca ou de frango é uma coisa que dificilmente acontecerá na realidade. As ratazanas que habitam nas imediações de restaurantes são bichinhos com capacidades de sobrevivência absolutamente fenomenais. Digo isto por experiência própria, se bem que este não é de todo o sítio para o explicar. Ou as ratazanas que servem no restaurante não foram capturadas ali perto e vêem de uma espécie de quinta onde criam ratazanas para abate e, neste caso, não me importo nada de comer o bicho, desde que devidamente cozinhado, ou então não servem ratazana, porque capturar uma ratazana de restaurante é muito difícil e quem ir pelo atalho de a servir em vez de outra carne mais nobre, certamente não vai gastar o tempo e a energia necessários para capturar uma. Isto é, no fundo, uma teoria que eu tenho e é bem capaz de estar errada, mas gostei deste parágrafo e não me apeteceu cortá-lo.
Ainda sobre a história da comunicação com o pessoal do restaurante há, por exemplo, um paquistanês clandestino no qual, tanto quanto sei, nunca comi um prato que tivesse exactamente o que pedi, ao ponto de ter começado a pedir pura e simplesmente para me trazerem comida a partir da terceira vez que lá fui. Posso, contudo, garantir que aquilo que se perdeu na comunicação entre mim e o Kamran nunca me prejudicou, nem me fez adoecer.


III

(Frustrated fireworks inside your head)

A minha aproximação à cozinha tem a mesma origem que o meu fascínio enquanto criança pelos tubos de ensaio cheios de líquidos coloridos e pelas pipetas. Sem perceber muito bem o que é que aquilo era, o que me impressionava e me atraía eram as cores vibrantes dentro de objectos transparentes com formas geométricas espantosas. Num aniversário um daqueles tios malucos e insensatos ofereceu-me um kit de química para crianças cujo anúncio passava na televisão e de que eu andava a falar há meses. Era, realmente, para pequenotes, mas de idade superior a dez anos e eu na altura tinhas uns seis ou sete, suponho, o que significa que para a minha mãe eu deveria ter uns três ou quatros.
Nunca cheguei a brincar com esse estojo porque entretanto esqueci-me da sua existência, provavelmente com a ajuda da eficaz psicologia materna, e quando finalmente fiz 10 anos a minha cena era outra, talvez uma Sega Saturn ou coisa parecida.
Isto significa – e prova – que a minha curiosidade não era verdadeiramente científica, era pura e simplesmente visual, e por isso não há que reprovar os meus pais pela repressão do meu instinto científico, pois nunca o devo ter tido. Não estou certo disto, mas arrisco dizer que é bem provável que os meus pais não tenham nada a ver com o facto de Portugal ainda não ter ganho um Prémio Nobel da Química.
 Ainda hoje, quando oiço falar sobre a aproximação científica à cozinha e sobre como isso ajuda a perceber o que verdadeiramente acontece quando se põe um naco de carne ao lume e como isso pode ser útil para melhorar e rentabilizar ainda mais o sabor, aquilo que me passa mais vezes pela cabeça é isto: “pá… eu gosto é de ver coisas a borbulhar de forma esquisita e de utilizar tubos de ensaio, pinças e conta-gotas”.
O tal estojo de química permaneceu na minha memória, como um hóspede discreto, sem que o meu pensamento em momento algum tivesse por costume cruzar-se com ele. Há uns dias, enquanto estava a preparar uma solução de alginato para fazer um caviar de sumo de maçã, tropecei finalmente com a história do estojo lá num dos edifícios já meio abandonados da minha memória. Automaticamente consegui explicar-me porque é que passo grande parte do meu tempo livre a fazer experiências com comida. Eu gosto imenso de comer, mas gosto muito mais de comer coisas cozinhadas por outros do que por mim. Aquilo que me atrai para a cozinha é, mais uma vez, o mesmo fascínio infantil que tinha pelos tubos de ensaio e pelas pipetas. Isto é possível porque sou um privilegiado. Para mim a cozinha não é um tentáculo do trabalho, não é uma obrigação. A minha mãe é uma cozinheira talentosa, mas nunca gostou muito de estar numa cozinha porque, imagino eu, deveria vê-la como um prolongamento do trabalho, como uma tarefa. Chegava a casa tarde e tinha a obrigação de alimentar um paspalho que tinha passado a duas últimas horas a ver desenhos-animados e a jogar Nintendo.
Comigo isto não acontece, porque não tenho a obrigação de cozinhar para ninguém, a não ser para me alimentar a mim próprio. Assim, a cozinha nunca é uma tarefa, é antes um espaço sem censura onde posso assumir qualquer risco porque, em última análise, sou apenas eu quem sofre com isso. Qualquer risco de envenenamento, queimadura de frio, indigestão, estorricamento de sobrancelhas ou, simplesmente, de enojamento apenas recai sobre mim. Isto confere-me uma segurança que me permite dar um passo maior que a minha perna e experimentar técnicas culinárias alienígenas sem nunca ter cozinhado grande parte das refeições mais básicas. Neste campo, sou como alguém que tenta aprender uma língua exótica sem começar pelo abecedário e pelo bom dia e boa tarde. E, se querem saber, é a coisa mais divertida do mundo.

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